21 de janeiro de 2006

Sentou-se e pediu logo um café. Costumavam demorar imenso tempo a vir às mesas, naquela esplanada do Largo do Carmo. Àquela hora, deviam faltar dez ou quinze minutos para ela chegar. A palavra ainda não tinha sido inventada; o que lhe vinha à cabeça era um misto de obscenidade e de cobardia.

Há dois meses que sei que te sentas aí, nessa mesma mesa, sempre às terças e às sextas. Coincidência ter-te encontrado, a escrever. Ainda não deixaste de vir uma única vez.

Há dois meses que ele sabe que ela vai àquela esplanada, às terças e sextas, pelas seis horas. Não faltou nem no dia vinte e três de Dezembro; deve ser daqui de Lisboa. Todas as sextas um livro, geralmente de arte, ou arquitectura. Sempre um bloco e uma máquina fotográfica em cima da mesa. Costuma pedir um café e um pastel de nata. Às vezes troca o café por uma meia-de-leite. Outras pede um aperitivo que ainda não conseguiu identificar. Pela aparência, um Moscatel, um Madeira, ou um Porto. Às vezes trás um leitor de CD’s. Não se preocupa em trautear alto; sempre Steve Poltz, Mazgani e Blind Pilot. Ele não conhecia nada daquilo. À hora certa, lá chegava ela. Ele, preso à cadeira.

Será que ela já me viu? Quem é ela? O que faz? As mesmas perguntas, sempre. Jorravam-lhe, inundavam-lhe a imaginação. Não falava daquilo a ninguém. Era ridículo. Nunca fizera nada. Nada mais que observar. Isto é ridículo . Às vezes sustinha a respiração e levantava-se ligeiramente. Depois sentava-se. Já várias vezes vira tipos ir falar com ela. Que frustração, era o que ele sentia. Tipos com bom aspecto (será que era aquilo que faziam na vida?), muitos deviam ser artistas. Pediam para desenhá-la, vinham falar com ela. Já a vira rir, a bom rir. E ele nada mais fazia que imaginá-los a ambos, juntos, a viverem juntos, a prepararem um pequeno-almoço juntos. Tu tropeçaste em mim, eu com as chávenas na mão, tu com o pão com doce, e olhaste-me nos olhos com uma cumplicidade que se situava mesmo entre a culpa e o arrependimento parcial . Ele imaginava-a na sua vida. Imaginava uma vida a dois, diferente. Imaginava, sonhava os bons momentos. Era isso que ele ia ali fazer; ia ali imaginar. Mas ia com a esperança de que um dia se tornasse mesmo a sua própria vida.

O medo, a vergonha. Porquê? Isto é ridículo. Naquele dia tinha dito: é hoje; tem de ser . Ele nunca dizia é hoje. Mais que tudo, o seu medo era de reconhecer-se falhado. Assim evitava falhar-se a si próprio, pelo menos formalmente. Naquele dia disse. É hoje . Tudo planeado. O que diria, o que não diria. Sabia que não iria ser nada disso que lhe viria à cabeça. Mesmo assim recreou aquilo vezes infindáveis, na sua imaginação.

E ela sentou-se. Em dez minutos, ele não pensou em rigorosamente nada. Limitou-se a olhar. Sentiu o tempo a passar. Até que pôs as mãos nos braços da cadeira. Assim que transferiu o peso e se começou a levantar, viu-a levar as mãos à cara. Ficou estático. Ela baixou a cabeça. Ele não conseguia distinguir se estava mesmo a tocar na mesa.

Ela está a chorar.

Ela estava a chorar. Primeiro timidamente. Depois nada o escondia.

Ela está a chorar!

Ele estava surpreendido. Aterrado. E deixou-se cair na cadeira. Na sua mente consolava-a. Passaram cinco ou seis minutos. Ela levantou-se e fugiu correr.

21 de janeiro de 2006

3 pensamentos em “Largo do Carmo

  1. Tá muito bonito! Muito bonito mesmo.
    E não sei porquê identifico-me com o texto…

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