5 de março de 2009

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Acto Um
Uma repórter a confundir a bandeira da Região Autónoma da Madeira com a do Estado do Vaticano. Na televisão, em directo. Foi isso que vi, por intermédio do Pedro Aniceto e que está registado aqui aqui. A tal repórter, se é que assim se pode chamar, cometeu três erros graves. O primeiro: não sabe identificar a bandeira do Vaticano. O segundo: não sabe identificar a bandeira da região da Madeira. O terceiro: pavoneia a sua ignorância
Eu não preciso que me num directo, ao que parece acerca do concerto da Madonna, me expliquem a origem da bandeira do Vaticano, de que portas são aquelas chaves que lá estão, o que significam aquelas as coroas empilhadas (vulgo tiara papal) ou mesmo a discrepância heráldica dos metais. Do mesmo modo que não estou à espera que se fale da cruz vermelha que está na bandeira da Madeira, a mesma que anda espalhada por tantos monumentos portugueses, nas caudas dos aviões da força aérea, nos navios dos descobrimentos ou nas medalhas que o Presidente da República atribui.
Só que o que se viu não é meramente um erro ou uma distracção. É fazer gala da falta de cultura. Talvez a repórter não o saiba, ou não o faça conscientemente, mas fá-lo.
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A verdade é que a repórter não pode ser culpabilizada única e exclusivamente por si só. Há que relativizar a sua culpa, então? Não, nada disso, há que nomear os diferentes responsáveis. A culpa é de um sistema educativo que não responsabiliza, de uma repórter que não tem consciência do que diz, de um empregador que não se preocupa e, no fim de contas, duma sociedade que não quer saber.
Claro, não estou à espera que nas escolas se ensine a bandeira do Vaticano, nem que a SIC exija dos seus repórteres um conhecimento enciclopédico. Mas verdade é que caminhamos para uma abundância da insignificância, em muitos casos agravada por uma tremenda e assustadora falta de brio. Não é só em Portugal, mas é dele que agora falo. A repórter não cora de vergonha, não pede desculpa (pelo menos pelo que sei); nas escolas e fora dela cada vez se exige menos, se responsabiliza menos; os empregadores não exigem qualidade, não seleccionam criteriosamente. Nos jornais, o que passa cá para fora é: uma agenda mediática seguidista e nada original, estagiários e jovens jornalistas de má qualidade, mas que são explorados, textos com um português medonho etc.
Eu confesso que leio jornais porque, tirando a parte dos cronistas que eu mesmo posso seleccionar, simplesmente aquelas empresas compram às agências noticiosas e me oferecem gratuitamente factos dos quais me interessa (às vezes) estar ao corrente. Cada vez mais (então se a agência noticiosa for estrangeira e os fornecer em Português) posso ler exactamente a mesma coisa em diversos jornais, até mesmo de diversos países. Isto é também uma mistura de industrialismo forreta com falta de brio profissional.
É curioso que na sociedade do conhecimento o conhecimento em si seja cada vez menos valorizado. Seja ele o científico, o artístico, o político, o jornalístico. Temos os deputados que temos, temos os jornalistas que temos, temos os alunos que temos; em grande parte porque o queremos, porque o merecemos.
Acto Dois
Chegou-me às mãos, através da Ana Paula, a seguinte imagem:
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Passou-se em Dezembro de 2007. Não faço ideia se faz parte das Novas Oportunidades ou outro programa de formação profissional com vista a qualificar a população portuguesa. Não quero acreditar sequer que isto seja um exemplo abundante por entre as opções disponíveis aos que procuram ajuda no IEFP. Mas aconteceu. E eu quis saber mais.
Há logo várias coisas que chamam a atenção: Equivalência escolar ao 9º ano, Saída Profissional: Jogador/a de Futebol. A coisa está dirigida ao público alvo com formação até ao 6º, 7º ano. Como qualquer jogador que se preze, apesar de não ser dito, tem de começar a ser formado relativamente cedo, presume-se que isto não seja para os que tenham tido o infortúnio de perder o emprego após vários anos na indústria têxtil.
Obviamente, a coisa é ridícula. Mas mais ridícula se torna quando se lê o Referencial de Formação do dito curso. A descrição geral está na imagem acima, mas embrenhemo-nos no documento. Num total de 825 horas, às quais “acrescem, em função da modalidade de desenvolvimento, as cargas horárias relativas às componentes de formação sociocultural, científica e prática em contexto real de trabalho” o que se pretende transmitir aos formandos é (atentai às precedências):
percursoformativo.jpg
Mais adiante, depois de uma belíssima prosa a descrever as metodologias de formação num género literário híbrido que combina o futebolês com o eduquês, podemos conhecer a fundo aquilo que vai ser ensinado aos petizes. Pede-se, por exemplo, no domínio do desenvolvimento físico que os formandos saibam “identificar e aplicar as manifestações de força e adequá-las às situações”, como por exemplo, “acelerar e travar”. Mas mais formativo, pelo menos para mim, é saber aquilo que se pretende ensinar no domínio da identificação e coordenação das reacções físicas de forma a responder a estímulos externos. Atentai, que eu desconhecia os vocábulos:

  • Coordenação óculo-pedal
  • Coordenação óculo-manual
  • Sensibilidade proprioceptiva do pé

Verifiquei no Houaiss, proprioceptivo é português e de alto gabarito! Já mandei o dicionário do computador aprender.
Mas há mais coisas que desconhecia, agora do domínio do desenvolvimento comportamental, mais especificamente na secção de saúde física. Desconhecia que um jogador de futebol necessitasse de estar ao corrente de temas como bioquímica da nutrição, bioimpedância, antropometria do desportista (no seu caso específico, ou em jeito de teoria etnográfica), patogenia dos desequilíbrios alimentares. Se isto é ensinado na escola do Sporting, acho que o mínimo que a Universidade de Lisboa devia fazer é convidar o Cristiano para professor assistente assim que deixar a carreira desportiva.
Só que a coisa não se fica por aí. Há todo um manancial de sabedoria na parte de gestão de carreiras. Os futuros jogadores são instruídos nas artes de (e agora isto vai depressa que o texto já está longo): Elaboração de um plano de Marketing Pessoal, Imagem social do jogador, O marketing-mix da imagem, O re-posicionamento da imagem como técnica de marketing pessoal, Conceito e organização das relações públicas, Redigir e enviar uma comunicação, Organizar uma sessão de fotografias, entrevista na rádio, entrevista na televisão, Elaboração do orçamento pessoal, Gestão da poupança, Aplicações sem risco, Aplicações com risco, Lei de bases do sistema desportivo, O empresário/agente – Regulamentação da actividade, Sociedade anónima desportiva – SAD, Contratos-programa de desenvolvimento desportivo, Espectáculos desportivos, Legislação laboral, Noções jurídicas da relação profissional de jogador/ clube de futebol, Suspensão do contrato de trabalho, Operações de crédito passivo, Reforma e cobrança de letras, Interpretação dos títulos de crédito, terminando com vinte e cinco horas de História do Futebol. Chiça!
Tomara que todos nós, aspirando a jogadores de futebol ou não, tivéssemos alguém que nos ensinasse tanta coisa! Eu ficava contente só com uma hora em que me fosse explicado o Modelo B e quais os benefícios fiscais que me são relevantes. E um bocadinho de gestão de poupança no liceu também tinha ajudado.
De qualquer forma, aqui fica o ficheiro. Aprendam como se organizam um curso e com sorte o IEFP paga-vos como formadores! Ide e jogai em paz.


ACTUALIZAÇÃO
Ao que parece, o curso não chegou a ter lugar. Menos mal. Mas espero que tenham ensinado às crianças, pelo menos, umas noções de Suspensão do contrato de trabalho.

Boa Tarde,
Em resposta à sua questão, informamos que a acção de Prática Desportiva de Futebol que estava prevista para Dezembro de 2007 não veio a ser posta em prática. O referencial de formação com data de Outubro de 2007 também foi retirado da grelha.
Com os melhores cumprimentos,
Centro de Emprego e Formação Profissional da Guarda
Delegação Regional Centro

5 de março de 2009

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