19 de outubro de 2009
Praticamente as coisas passavam-se assim: um Estado não-intervencionista, tendo na sua cúpula um chefe decorativo, estático, que não governava, assumia as funções de guardião dos direitos da propriedade privada e as do policiamento da mecânica das acções e reacções provocadas pelo antagonismo dos interesses do capital e do trabalho, para evitar que o fenómeno degenerasse em perturbações da ordem pública. O lema das sociedades, no tocante à actividade funcional do Estado, era o clássico «laissez faire, laissez passer», pretendendo garantir-se deste modo a imunidade da iniciativa individual, considerada como força motriz do progresso.
Ora, deste sistema orgânico das forças económicas, sociais e políticas tinham sem dúvida derivado acréscimos notáveis da produção, diminuições sensacionais da quantidade de energia manual e correlativos aumentos da quantidade de energia mecânica incorporada em cada unidade produzida. Assim, pois, o aperfeiçoamento da técnica vinha gerando autênticos milagres no sector fabril e até no ramo agrícola. As capitalizações, sob as modalidades de bens mobiliários e imobiliários, atingiram valores assombrosos nos países mais desenvolvidos.
É, porém, certo que «não há formosa sem senão»: no capítulo das riquezas tinham-se originado flagrantes injustiças, desigualdades cada vez mais acentuadas, o que ocasionava, à costa deste avolumar de entropia social, rancores e divisões intestinas. A neutralidade do Estado nos conflitos entre o capital e o trabalho era afinal de contas tão revoltante como o não-intervencionismo dum polícia na luta entre um campeão de boxe e uma criança.
Cunha Leal em As Minhas Memórias, Coisas dos Tempos Idos (volume I, Lisboa, 1966), sobre o período «de civilização» que teve lugar de meados do século XIX ao início da Primeira Guerra Mundial.
Publicado no É Tudo Gente Morta