9 de maio de 2014

O Público fez uma interessante recolha de testemunhos sobre a praxe universitária. A experiência da praxe varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar. Umas são mais suaves, outras mais rígidas; há quem goste e quem não goste. Eu não gosto.

Antes de mais devo dizer que reconheço a importância dos rituais – marcam a cadência da vida. Todas as organizações têm rituais iniciáticos, é algo que faz parte da natureza humana. Quando fiz a minha licenciatura no Técnico fiquei surpreendido e indignado por não haver rituais oficiais de início e de fim de curso. No dia em que acabei o curso, apesar de ninguém ter verbalizado as palavras, a sensação que ficou foi dum “obrigado, agora deixe de cá aparecer”. Tendo depois me doutorado numa universidade americana, vi a força dum ritual de fim de curso – ou início de vida, já que se chama commencement. Os rituais marcam entradas e saídas, marcam presenças e pertenças. Os rituais fazem vir ao de cima uma sensação de sermos parte dum colectivo. Reconheço que em Portugal temos uma certa aversão a algum tipo de rituais. Pessoalmente não sou contra rituais. Mas sou contra a praxe.

A praxe é um ritual diferente: nas descrições dos que afirmam mais ter gostado da praxe, esta é tida como uma actividade que dura todo o ano lectivo e que se estende ao longo da duração do curso. No entanto, mesmo naquelas em que a “tradição” não é tão forte, há um elemento primordial sempre permanente: a força da hierarquia.

As análises dos especialistas que o Público consultou são interessantes. Aborda-se a natureza humana, a identificação e cópia duma sociedade idealizada, posterior à vida de estudante, e o teor erótico e sexual da motivação dos que participam na praxe. Não vou repetir argumentos, vou essencialmente discutir a questão da hierarquia e da noção latente de poder.

O conceito mais fundamental e indispensável à praxe é o da hierarquia: a submissão dos praxados, a superioridade dos praxantes. Embora os submissos possam sempre dizer “não” à praxe, os que verdadeiramente participam sujeitam-se à hierarquia. A marca dessa hierarquia é a capacidade de exercer poder sobre os destinos dos submissos. Jogos psicológicos e actividades físicas, gritos e ofensas verbais e actividades de confraternização – resumindo, penso, cabe tudo numa destas categorias.

«A praxe envolve humilhação, envolve gritos, envolve estar de 4». [1] «Cantei, andei de autocarro cheia de farinha e no final do dia estava sempre de sorriso nos lábios. Não houve um momento de humilhação, eu sei, estava atenta (…).» [2] «Nunca, no decorrer das praxes, me senti humilhado nem inferiorizado, isto porque apesar de estar a ser praxado, nunca recebi uma praxe que tal permitisse. Não se enganem, pois as praxes aqui são duras. Nunca me irei esquecer das directas consecutivas, da constante voz rouca, do cheiro contínuo a peixe, nem dos alhos e cebolas incontáveis que tive de comer, ou ainda dos joelhos esfolados, resultado de horas intermináveis de joelhos.» [3] Há quem diga que nenhum destes actos constitui humilhação ou ofensa – é certo que, em certa medida, aquilo que é humilhação ou ofensa é subjectivo e cada um submete-se ao que bem entender. Mas aos olhos da maioria da sociedade, rastejar porque alguém nos ordena (ou pede) não deixa de ser humilhação.

A praxe é, em teoria, opcional. Não vou falar da pressão dos pares e já mencionei o “não” que todos podem supostamente declarar. Mas é indiscutível que aqueles que se dizem “sim” se submetem à hierarquia. Os submissos são imediatamente tratados como “bestas”; pode ser que seja carinhoso, mas não deixa de ser um facto de que são considerados – de forma teatral ou não – como inferiores. Os submissos têm de acatar essas designações, bem como as ordens que lhes são dadas: o questionar existe apenas se se considerar que as regras da praxe estão a ser violadas.

Nos testemunhos há um número de pessoas que justificam isto como um mimetismo daquilo que os espera no futuro. Por exemplo, «(…) a praxe ensina-nos isto, ensina-nos que na vida há uma hierarquia natural e que nós vamos ter de aceitá-la, ensina-nos a respeitar essa hierarquia.» [1] Sim, mas… «O estatuto de caloiro tem como função explicar-lhes que quando forem trabalhar para uma empresa vão estar no patamar mais baixo de uma pirâmide hierárquica. Pior ainda: não terão ninguém que os ajude a adaptarem-se a essa realidade.» [4] «(…) um dia, num futuro emprego, o meu patrão poderá chamar-me de incompetente e eu terei de saber aceitá-lo (…)» [1].

Obviamente que todos nós vivemos em sociedade em que estamos inseridos em estruturas hierárquicas. Não, não temos que acatar, amorfos, as ordens e os insultos duma hierarquia insultuosa e desrespeitosa. Há qualquer coisa de espírito militar nestes testemunhos. Infelizmente, a visão que estes alunos têm do mundo é profundamente triste e inviesada, possivelmente causadora de danos irreparáveis. Se, como afirma um dos testemunhos, eles copiam o mal feito pelos “mais velhos”, então mais triste fico pelo facto de se conformarem em ser elementos que apenas perpetuam o mal-estar.

Nos testemunhos perpassa um espírito de amor à regra e à burocracia. É um amor próprio do funcionário-empecilho, daquele que se agarra às regras não como elementos estruturantes de uma comunidade, mas como a fonte de autoridade e legitimidade (vejam os relatórios que o conselho da praxe da Lusófona produzia!). «É por isso que existe um pequeno livrinho chamado “Código de Praxe”. No nosso mundo académico, temos normas específicas para regulamentar» [5]. «Há um controlo apertado no que toca a relacionamentos amorosos entre doutores e caloiros. Não é permitido esse tipo de relacionamento. “A praxe não é para o engate!” O que não invalida que haja pessoas que já namorem e que informem os responsáveis pela praxe para esse facto (ex: um casal de namorados do 12.º ano; ele entra na faculdade e ela reprova o 12.º. Ela, no ano seguinte, entra na mesma faculdade do namorado, que está agora no 2.º ano. O casal deve avisar a comissão de praxe para esse facto).» [4]

Também este sentimento se enquadra no espírito militar que já referi. As regras e a autoridade, a hierarquia e o poder incontestado. Todos já ouvimos historias, vimos filmes ou lemos livros que contam a brutalidade da organização militar, onde estes elementos estão todos presentes. «SOMOS um só, nós e os nossos doutores.» [6] Este é um dos elementos mais marcantes da pertença às forças armadas: a camaradagem. E é tanto maior quanto maior as privações passadas em conjunto. O elemento opressivo das praxes replica esta situação: os submissos passam por situações duras e difíceis em conjunto, momentos de extremo cansaço, vergonha e intimidação, tudo sob uma tensão opressiva que é aliviada de forma abrupta no final do ano. É o fim da guerra e eles sobreviveram.

A sensação é tão forte — quase todos nós já sentimos algo semelhante em diferentes contextos — que leva a que os que a sentiram mais intensamente queiram perpetuar e transmiti-la aos vindouros. Nem todos têm ânsia de poder, nem todos querem dominar; muitos querem apenas partilhar essa intensidade que viveram. Descrevem-na como camaradagem, amizade, integração, orgulho, etc. Há sempre aqueles que se entregam de corpo e alma, os que descobriram algo novo e que acabam por ser funcionários instrumentais da hierarquia: «No fim de tudo, eu que nem achava grande piada às praxes, fui caloira do ano.» [2]; «Fui eleita caloira do ano, para meu espanto. (…) Um dia trajei. Ai, que dia. Que saudades! O dia em que mais chorei, em que vivi tanta mas tanta emoção e que estava orgulhosa daquilo que tinha vestido. Traje para o qual tanto me esforcei. Senti-me completa.» [7]

Se os há heróicos, também há exemplo de militares abjectos e mesquinhos que se apropriam destes elementos para exercer o seu poder. São os mesmo que fazem a apologia do orgulho bacoco e exigem a dedicação inquestionável. No entanto no mundo militar preparam-se soldados para a guerra, para a morte pelos valores da pátria. Querer equiparar isso com o espírito académico é simplesmente ridículo.

«Sou grande animal, na mui nobre academia de Vila Real, UTAD.» [6] Desculpe? Grande animal? Não quero desrespeitar os que dão o seu melhor na UTAD, mas de que é que se orgulha esta estudante? Claro que todos devemos sentir orgulho das instituições a que pertencemos, onde aprendemos e crescemos, e que têm um papel importante na nossa formação. Mas que o seja pelas razões certas. Mais uma vez a Bia Miranda: «Encarem a praxe como deve ser encarada — uma tradição cultural que existe há tanto tempo no nosso país. Como pode ser assim tão “má”, existindo há tanto tempo e com tanta gente a orgulhar-se de nela se ter envolvido?!» Ui.

Como um soldado que vai à guerra, rejeitam que os outros, os civis, possam sequer conceber aquilo porque passaram: «Muitas dessas pessoas que estão a criticar forte e feio nunca foram a uma praxe na vida, nunca tiveram uma única experiência para poderem comentar sobre ela.» [5] «Só pode falar de praxe, só pode saber o que é a praxe QUEM foi praxado e quem praxou!» [4]. Se é certo que não terei as mesmas vivências, isso não me impede de poder discutir o assunto. É um argumento falacioso, esse do apelo à experiência. Posso falar sobre violações sem ter sido vítima de agressão sexual, posso falar de prostituição sem ter sido prostituto.

Há rituais de iniciação brilhantes, aqui ficam dois exemplos, um em português, outro em inglês. Mas da praxe académica, raramente vi exemplos que me interessassem. «Apenas consegui ver colegas meus a (…) ser submetidos a questões do tipo (…) “mostra-me o teu sexo” e “faz-me um broche”. Isto, para a grande maioria das pessoas, seria uma ofensa extrema e razões mais que suficientes para aniquilar a praxe.(…) A resposta às questões não têm nem teor sexual nem ofensivo. Só como exemplo, a resposta ao pedido de fazer um broche é pegar numa colher de café, que nos é dada, torcê-la e colocar no casaco do veterano tal como o acessório de vestuário, broche. (…).» [8]. Brilhante e hilariante! E claro, não só educativo e de bom gosto, como certamente instrutivo para a vida futura de um estudante.

Ao contrário do que muitos querem fazer passar, as universidade têm toda a culpa nos excessos. Elas são responsáveis pelos seus alunos e pela criação de um ambiente seguro e construtivo que promova a educação. E dizer que «todos os dias morrem pessoas nas estradas e não vamos proibir alguém de andar na estrada»[9] é simplesmente absurdo. Especialmente inadmissível tratando-se de um reitor.

Eu não duvido que das praxes saiam sentimentos únicos e intensos como já acima referi. Não duvido que uns façam amigos para a vida e que alguns até tirem proveito de conselhos, académicos ou de vida, que saem da confraternização proporcionada pelas praxes. Mas não consigo admitir que alguém queira aceder a isso sujeitando-se à submissão e ao insulto, à pertença a hierarquias que podem degenerar em “old boy networks”. Antes a recruta, sempre se pratica tiro ao alvo! Citando a Nídia Sobral, «acho que escrevi de mais (sic)». [5]

9 de maio de 2014

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