27 de abril de 2020

Numa coisa esta pandemia revela-se normal: há opiniões para tudo, dos que acham que é o fim do mundo, aos que acham que não é nada de mais. E há parvoíce.

No início do mês, o jornal ECO publicou um artigo de opinião intitulado «Um século de epidemiologia diz-nos outra coisa». Depois, um site de notícias, convencido da força das ideias do artigo, deu tempo de antena ao autor numa entrevista intitulada “A Autópsia de um Equívoco”. Há um equívoco, sim.

A premissa do artigo é a seguinte:

«Seria tempo de usar o conhecimento de cem anos de epidemiologia na gestão desta epidemia, em vez de adoptar medidas extremas e que seguramente terão um grande impacto negativo na nossa vida.»

e o autor, um indivíduo de seu nome e título, André Dias, PhD, numa série de exposições mostra como ele, e aparentemente mais ninguém, viu como tudo isto não passa de um mal-entendido. No fundo, estão todos errados. Menos ele, claro.

Não raramente, o alto débito de informação com pouco ou nenhum contraditório serve para inundar e atolar quem a recebe. Mais ainda quando essa informação se afigura verossímil. E no entanto isso não a torna verdadeira.

Antes de entrarmos pelo conteúdo, tomemos esta afirmação que o autor, a certa altura, proclama:

«Mesmo que fosse muito mau, os vírus pulmonares são sempre lentos, nunca infectam mais de 30% das pessoas por ano, não importa o “como” e “onde”.»

O autor faz uma proclamação autoritária e definida. Atentemos à seguinte passagem.

As Ilhas Faroé são pequenas formações vulcânicas que emergem da água no extremo norte do Oceano Atlântico. Na periferia da Europa, são isoladas e frias; em 1846 eram um dos locais mais saudáveis do mundo. Mas nesse ano, um carpinteiro nativo da ilha regressou de Copenhaga com uma tosse intensa. Tinha sarampo. O vírus havia estado ausente das Ilhas Faroé por mais de 60 anos e, numa altura em que ainda não existia vacina, poucos habitantes da ilha tinham imunidade à doença. Durante os cinco meses seguintes, 6 100 dos 7 900 habitantes da ilha ficaram doentes. Mais de uma centena morreram.

O Governo dinamarquês, distante soberano destas pequenas ilhas, enviou ao local Peter Panum, um jovem e perceptivo médico de patilhas distintas. O seu relatório provou, sem margem para dúvidas, que a doença se propagou por contacto directo. Trata-se de um documento seminal de epidemiologia. fonte

O vírus do sarampo é um vírus respiratório que se transmite por via aérea. Ora, 6100 / 7900 = 77%. Mais que 30%, se não estou em erro. E em 5 meses. Há outros exemplos, como a da epidemia de 1911 na ilha de Rotuma. Estamos conversados?

Não, não estamos. A categórica frase de André Dias aparenta ser séria, mas é falsa. Para quem diz ter formação em epidemiologia e que devemos estar atentos aos últimos cem anos de conhecimentos epidemiológicos, é estranho não ter conhecimento dos resultados considerados fundadores da epidemiologia moderna, publicados há… 170 anos.

Em 1940, Haven Emerson, médico de saúde pública pioneiro e Health Commissioner of New York City, fez uma recensão por ocasião da tradução inglesa da obra de Panum:

Here is a model of dignity, restraint, honesty, accuracy and intellectual stimulation; a rare and precious publication; 111 pages of medical treasure, named from the kernel of 20 pages in which the observations of that remarkable physiologist and epidemiologist, Peter Ludwig Panum first revealed his quality in analytical literature.

From the frontispiece portrait of the rugged devotee of truth and logic to the final tabulation of complications causing deaths of measles patients, there is not a superfluous or irrelevant word.

Permitam-me a ousadia, mas posso, com quase toda a certeza, dizer que nenhuma das palavras acima serão alguma vez usadas para descrever estas considerações epidemiológicas do Dr. André Dias.

Vamos então ao que (não) interessa.

Os dados

«Neste momento (escrito a 23 de Março), não há nenhuns dados fiáveis para estimar a letalidade da covid19, pode ser 0,001% ou 5%. Tudo isso é ruído. O número de infectados pode ser o que conhecemos ou dez mil vezes maior (sim, dez mil vezes).»

Isto é verdade. Os dados são imperfeitos, incompletos, temporalmente limitados, e sobretudo, com excepção da China e da Coreia do Sul, estávamos no início do surto. Note-se ainda que ao mesmo tempo que o surto conflagra, estamos a mudar as condições de propagação do virus, por termos embarcado na maior experiência de confinamento e isolamento de que há memória. De qualquer maneira não sabemos exactamente quando é que o autor estava a olhar para os dados, uma vez que afirma tê-lo escrito a 23 de Março, mais tarde diz que está a olhar para dados de 1 de Abril e o artigo foi publicado dez dias depois.

E no entanto, há pessoas a morrer, a entupir os hospitais, portanto havia e há que actuar. O futuro dirá se foi uma actuação desproporcionada ou não, mas mesmo no futuro as análises não vão ser triviais, como muitas análises a anteriores epidemias, ou mesmo à gripe sazonal mostram. E mesmo com melhores dados no futuro, como dizem os anglófonos, hindsight is 20/20.

Portanto, sim, os dados são certamente problemáticos para se fazerem, de forma rigorosa, proclamações definitivas acerca das características da epidemia e da doença. Aí concordamos. Ainda assim, o autor, após proclamar a pouca fiabilidade dos dados não se coíbe de, logo depois, afirmar:

«As estimativas actuais da letalidade colocam a covid19 no nível da gripe (..) perfeitamente banal para picos de gripe.»

Pronto. Está o caldo entornado. Então os dados não eram só ruído? «não há nenhuns dados fiáveis para estimar a letalidade da covid19» mas afinal já se pode dizer que é perfeitamente banal para os picos de gripe?

O autor depois fala de duas formas de se estimar a magnitude do problema, já que tudo o resto “é ruído”: usando os dados do navio Diamond Princess e os dados da rede europeia de monitorização da mortalidade (EuroMOMO).

O Navio Diamond Princess

Uma das maneiras, segundo o autor, é olharmos para o que aconteceu no navio onde uma população esteve confinada. De facto, a letalidade (chamemos-lhe IFR, or Infections Fatality Rate, i.e. número de mortes a dividir por todos os casos de infecção) foi estimada num estudo de final de Março como 1.3% (Intervalo de Confiança, IC 95%: 0.38–3.6) e o CFR 2.6% (IC 95%: 0.89–6.7). O CFR, ou Case Fatality Rate é o número de mortes a dividir pelos casos conhecidos de infecção.

Uma nota: mais tarde o autor acusa a Organização Mundial de Saúde (OMS) de falta de rigor na divulgação de dados, mas o autor usa o termo “letalidade” para umas vezes falar de IFR, outras de CFR.

Tipicamente numa pandemia em curso, o que se calcula é o CFR, uma vez que há casos assintomáticos ou que simplesmente não são testados, e o IFR é determinado a posteriori, com base em estimativas e rastreios serológicos da população. Neste caso, como a população do barco foi toda testada e os investigadores podiam separar entre casos sintomáticos e assintomáticos, foi possível estimar qual seria o CFR. O IFR final (mais tarde vieram a contabilizar-se mais casos) ficou em 1.97%, dentro da estimativa dos autores.

A população do navio é, de facto, envelhecida, e portanto, os autores do estudo acima extrapolaram os valores para uma distribuição etária real baseada em dados chineses até 11 de Fevereiro, determinando um IFR = 0.6% (IC 95%: 0.2–1.7) e um CFR = 1.2% (IC 95%: 0.3–3.1), efectivamente mais baixos que os números crus do navio. Note-se, no entanto, que Wuhan foi fechada a 23 de Janeiro e a província de Hubei fica completamente fechada a 28 de Janeiro.

Olhemos agora para os dados do CDC das épocas de gripe na última década, nos EUA. O cálculo do IFR foi feito por mim com base no total estimado de doenças (illnesses), embora esses sejam apenas os casos sintomáticos (a fracção dos assintomáticos não é clara).

Figura 1 – Estimativas do CDC das épocas de gripe na última década, nos EUA. O cálculo do IFR foi feito por mim com base no total estimado de doenças (illnesses).

Isto significa que o IFR da COVID-19 é cerca de 3 a 6 vezes pior que a gripe, em termos de mortes, com base nos dados do navio e dos casos chineses. Mas isto até pode ser irrelevante, por agora – convém dizer que: 1) os dados têm ruído (como o autor diz!) e os dados da gripe estão longe de ser definitivos; 2) o IFR não é necessariamente uma propriedade do virus – depende de muitos outros factores; e 3) como vou realçar abaixo: estamos praticamente todos, de uma forma ou de outra, em confinamento ou sob medidas de controlo de pandemia!

EuroMOMO

Olhemos agora para o tal EuroMOMO (European Mortality Monitor)

«Olhar para os gráficos do Euromomo e ver que a mortalidade está muito abaixo de um pico de gripe diz-te noventa por cento do que precisas de saber. (…) Um pico em 2017/2018 de mortalidade de sensivelmente 150 mil pessoas na Europa (…) Se olharmos para os dados em bruto não está sequer perto da mortalidade de um pico de gripe e é isso que importa.»

Os dados que o autor realçou foram relativamente ao seguinte gráfico:

Figura 2 – Gráfico partilhado no vídeo realçando o pico de gripe do inverno 2017/2018

Antes de mais há que tomar atenção à seguinte cautela feita pelos autores deste instrumento:

Note on interpretation of data: The number of deaths shown for the three most recent weeks should be interpreted with caution as adjustments for delayed registrations may be imprecise. Furthermore, results of pooled analyses may vary depending on countries included in the weekly analyses. Pooled analyses are adjusted for variation between the included countries and for differences in the local delay in reporting.

Ou seja, os dados das últimas três semanas reportadas são provisórios. Vejamos então, uma semana depois, o mesmo gráfico – os dados na zona a amarelo estão substancialmente diferentes e o gráfico muda de aspecto:

Figura 3 – Actualização dos dados do gráfico da Figura 2, mostrando um aumento das mortes nas últimas semanas. O valor Z-score do pico é quase o dobro do da semana anterior.

Note-se que a escala mudou e o pico agora é maior que qualquer pico de gripe nestes registos (últimos 4 anos). A largura do pico – que dará o total de mortes – essa é preciso esperar para saber.

Para além do número de mortes, o gráfico mostra a mesma informação numa outra escala: a de Z-score. Z-score é uma medida de comparação do número de mortes em relação à base (faixa da média esperada quando não há surtos) e é medido em unidades de desvio padrão. O valor Z-score do pico é quase o dobro do da semana anterior.

Já agora, uma maneira boa de se ver a diferença que faz o facto de os dados serem provisórios é olhar para o mapa da Z-score por país da semana 15, reportado na semana 16 (esquerda) e reportado na semana 17 (direita):

Figura 4 – EuroMOMO | Mapa da Z-score por país da semana 15, reportado na semana 16 (esquerda) e reportado na semana 17 (direita), revelam alterações aos dados temporários.

Estes dados são dados cumulativos de várias regiões europeias. O autor depois focou-se no caso Português, para mostrar como nada de especial se passa em Portugal em termos de mortes. E tem razão, da mesma forma que tem razão quando diz que a época de gripe não foi particularmente grave este inverno. Nada como em 2016-2017. E mais, não é só em Portugal que o número de mortes é, como diz o autor, “banal”, mas são todos estes países:

Figura 5 – Países europeus cujo índice de mortalidade excedente não ultrapassa a mortalidade normal, ou ultrapassa por pouco.

O que se deve notar, no entanto, é que estes números de mortes normais também entram para o resumo cumulativo. Isto quer dizer que, se “desdobrarmos” o tal resultado cumulativo sumário, vemos o que se passa no resto dos países:

Figura 6 – Países europeus cujo índice de mortalidade excedente ultrapassa a mortalidade normal.

Aqui o caso já não é tão côr-de-rosa. Todos eles estão a ter números de mortes excepcionais, bem acima do que é normal, para a maioria, e daquilo que são os picos de gripe nos últimos quatro anos. É certo que a maioria das mortes ocorre em pessoas com mais de 64 anos. Olhe-se no entanto para o grupo etário abaixo (15-64) em Inglaterra. É absolutamente anormal:

Figura 7 – Z-score de mortes excedentes no grupo etário abaixo (15-64) em Inglaterra.

Os gráficos estão em Z-scores, que nos dão uma medida do desvio em relação ao normal, mas infelizmente o número total de mortes, bem como o cálculo das mortes excedentes só está disponível para o total da região (e note-se que esta é uma região amostra, de diversas cidades/áreas de diversos países – não um total de todas as mortes nos países indicados):

Figura 8 – Mortalidade excedente na amostra EuroMOMO.

No entanto, dá para ver que o que está a acontecer adivinha-se mais grave do que as épocas de gripe dos últimos 5 anos. Ainda temos de esperar para saber a duração do pico – segundo o Dr. Dias, até Maio – mas o número de mortes excedentes por semana já atingiu quase 34 000, o dobro do máximo do pior pico das últimas quatro temporadas de gripe.

E em Itália? Diz o autor:

«Provavelmente a mortalidade em Itália ficará várias vezes abaixo de 2014 (…) [do] pico de 54 000 mortos.»

Aqui fica uma pequena investigação acerca desse pico de 54 000 mortos no inverno 2014/2015, e de como se compara com o que se está a passar.

Figura 9 – Como se compara o “pico de 54 000 mortos” do inverno 2014/2015 com os dados de mortes excedentes actuais, em Itália.

Resumindo, aquilo que o EuroMOMO registou como mortes excedentes em 2014/2015 aparenta ser significativamente mais ligeiro do que o que se está a ver agora. As contas finais o dirão, mas segundo a amostra do EuroMOMO, Itália encaminha-se para um resultado particularmente sinistro. E se ficará muitas vezes abaixo do valor de 54 000 de 2014? Bem, os dados confirmados, de sete semanas, mostram já cerca de 24 000 mortes, e dois estudos preliminares estimam que o número de mortes efectivo esteja já em cerca do dobro das reportadas.

Portanto, o que está a acontecer em alguns países da Europa, em termos de mortes, não é “banal”. E nos outros? Também está longe de ser “banal”, porque a verdade é que grande parte dos países está sobre medidas mais ou menos austeras de isolamento e confinamento.

E por isso, há que realçar o seguinte, sobre todas estas contabilizações: os números que estamos a ver, estamos a vê-los sob a maior implementação de medidas de isolamento e confinamento alguma vez posta em prática.

Ah, mas o Dr. Dias proclama que:

«As medidas de contenção não demonstram a mais remota efectividade.»

Vamos então a isso, mas antes, uma nota adicional: o mesmo mapa acima, mas sobreposto com os dias em que as restrições (lockdown ou equivalente) foram impostas antes (a verde) ou depois (a amarelo e vermelho) da primeira morte:

Figura 10 – Mapa da mortalidade excedente na semana 15 sobreposto com os dias em que as restrições (lockdown ou equivalente) foram impostas antes (a verde) ou depois (a amarelo e vermelho) da primeira morte.

As distribuições

O autor diz o seguinte no artigo:

«As medidas de contenção não demonstram a mais remota efectividade. Todos os países, com excepção da Coreia do Sul agora, apresentam curvas teóricas perfeitas com 12 a 15 dias até ao pico de casos novos, depois de entrar em exponencial, que é o padrão representativo de infecções pulmonares sem controlo.»

E expande o seu raciocínio no vídeo:

Como é que eu vejo o que é que eu vi que aconteceu na China? A primeira coisa que me chamou a atenção na China, graças a análise, é que a curva chinesa é uma gaussiana perfeita uma distribuição normal perfeita. Bom e isso é um indicador muito forte que é uma infecção sem qualquer tipo de controle de infecções. (…) uma infecção na natureza numa população natural, elas desenham sempre uma distribuição normal (…) Isto é uma infecção em roda livre absolutamente nada aqui que esteja alterar o padrão esperado.

Suspendamos o conhecimento que temos de que a transmissão do vírus ocorre por via aérea entre pessoas fisicamente próximas e que as medidas de confinamento separam fisicamente as pessoas. Vamos, então, considerar o que diz o Dr. Dias e olhemos para os dados de casos diários na China que mostro no gráfico abaixo, ignorando o pico de casos reportados a 12 de Fevereiro. O que obtemos é o seguinte:

Figura 11 – Comparação de ajuste dos casos chineses, excluindo pico de 12 de Fevereiro, a duas curvas: à direita, uma curva assimétrica (lognormal) e à esquerda, a uma curva simétrica (gaussiana). A curva assimétrica ajusta-se melhor (root mean square error, RMSE, menor)

É difícil ver que os dados sejam simétricos, mas fiz um ajuste a duas curvas: à direita, a uma curva assimétrica (lognormal) e à esquerda, a uma curva simétrica (gaussiana). A curva assimétrica ajusta-se melhor (root mean square error, RMSE, menor).

Mas ignoremos isso. Como o Dr. Dias disse, e bem, os dados reportados têm ruído. E mais importante que a data de anúncio dos casos – que podem ser contabilizados a alturas diferentes do estágio da infecção – é a data de início de sintomas de cada infecção. Veja-se então esses dados, aos quais eu, manualmente, sobrepus uma curva gaussiana, i.e., uma distribuição normal:

Figura 12 – Distribuição dos casos diários chineses segundo a data de registo (amarelo) e de primeiro sintoma (azul). Sobreposição de curva gaussiana a estes últimos dados (verde).

Como é mais que visível, os casos não se distribuem segundo uma “curva gaussiana perfeita”.

Não vou entrar em discussões sobre se isto é um marcador do efeito ou da falta de efeito das medidas de contenção – curiosamente também eu não sou epidemiologista. Apenas refiro que qualquer “análise” do Dr. Dias peca por se basear numa premissa falsa, e logo, as conclusões não podem estar certas.

Já agora, olhe-se para os casos de alguns dos países europeus e veja-se qual registo de casos se assemelha com uma “curva gaussiana perfeita”. E confirmem-se os “12 a 15 dias até ao pico”. Compare-se também com a figura 10.

Figura 13 – Casos diários reportados de vários países europeus.

E finalmente, sem entrar em grandes detalhes, veja-se a variação da assimetria de curvas de casos infecciosos num modelo SIR (modelo básico de propagação epidemiológica que simula três compartimentos: os grupo dos Susceptíveis, ou não infectados, os Infectados, e os Recuperados, i.e., mortos ou convalescidos) com a variação das taxas de infecciosidade e recuperação:

Figura 14 – Variação observável da assimetria de curvas de casos infecciosos (vermelho) num modelo SIR com com a variação das taxas de infecciosidade e recuperação.

Nos casos em que o vírus provoca menor número de infecções, a curva de infectados ao longo do tempo é menos assimétrica.

O Dr. Dias diz que as medidas de contenção não estão a ter efeito porque… não sei quê curvas perfeitas. Outros discordam, e dizem que sim, deixo-os falar.

A OMS

O autor não deixa de criticar, e muito, a actuação da OMS. Haverá certamente críticas a fazer, mas o Dr. Dias afirma que a organização deveria “responder criminalmente”:

«É preciso um cuidado extremo, extremo, paranóico, com a divulgação de dados iniciais de surtos em particular com a letalidade. A Organização Mundial de Saúde (OMS) devia responder criminalmente por não controlar esses dados e não assegurar que indica a ordem de grandeza do ruído. Foi só e apenas isso que fez este “surto”. (…)

Provavelmente terá sido a qualidade do ar em Wuhan que terá espoletado os alertas de surto da OMS e o governo chinês entrou à bruta. As imagens criaram pânico no mundo… »

No artigo, o Dr. Dias conteve-se. Só disse isto. Mas no vídeo expandiu o seu “raciocínio”. Um desvario total, do género conspirativo, que tentei resumir – e contrapor – na cronologia abaixo.

Figura 15 – Eventos na China e a OMS, segundo André Dias (cima) e segundo fontes públicas.

Resumindo, segundo o Dr. Dias, a OMS foi dizer às autoridades da China em Janeiro ou Fevereiro uma coisa que as autoridades Chinesas já haviam transmitido à OMS em Dezembro. E segundo ele, foram irresponsáveis por não alertar o mundo da incerteza dos dados – precisamente o oposto do que aconteceu, como citei na cronologia, e cujas fontes estão aqui: 1, 2, 3, 4.

Os crematórios

O autor resolve explicar o que se passa com os serviços funerários nos sítios mais críticos da epidemia:

«Foi o mesmo medo que fez colapsar os serviços funerários em Bergamo e Madrid e agora Nova Iorque. Os corpos têm de ser cremados por ser doença formalmente contagiosa de notificação, e os funcionários são obrigados a medidas de protecção total que diminuem a produtividade.»

Isto é absolutamente falso. Em Nova Iorque:

«(…) funeral homes and cemeteries may continue to operate given their essential business designation (…) Final disposition, either burial or cremation, should take place as soon as possible» fonte

e em Itália:

«Ceremonies have also been banned, in order to avoid mass gatherings. The funeral was reduced to simply transporting the sealed coffin to the cemetery or crematorium. The cremation of people who died as a result of COVID-19 is not compulsory.» fonte

Fica como trabalho de casa procurar o caso de Madrid. Nem sequer vou entrar pelos devaneios explanados pelo autor, mas deixo aqui só estes dois exemplos (adicionais) de como o autor propaga informação comprovadamente falsa, que usa como suporte das teorias com que deslumbra o leitor menos informado ou atento.

O pânico

Para o Dr. Dias, tudo não passa de um pânico, uma vez que não se pode sequer estimar a letalidade (IFR? CFR?), embora o autor não se tenha coibido de afirmar que a letalidade é “banal”, mais baixa que a gripe:

«Como não se pode sequer estimar no início a letalidade, todo o medo e pânico são irracionais.»

A frase, digna de um líder da União Soviética momentos depois do reactor explodir em Chernobyl, revela a confiança que André Dias tem no seu conhecimento de saúde pública e de gestão do risco.

Nassim Taleb, Distinguished Professor of Risk Engineering na NYU, discorda:

First, it should be evident that one cannot compare fatalities from multiplicative infectious diseases (fat-tailed, like a Pareto) to those from car accidents, heart attacks or falls from ladders (thin-tailed, like a Gaussian). Yet this is a common (and costly) error in policy making, and in both the decision science and the journalistic literature.

Some research papers even criticise people’s “paranoïa“ with respect to pandemics, not understanding that such a paranoïa is merely responsible (and realistic) risk management in front of potentially destructive events. The main problem is that those articles – often relied upon for policy making – consistently use the wrong thin-tailed distributions, underestimating tail risk, so that every conservative or preventative reaction is bound to be considered an overreaction.

Em qualquer situação de incerteza, perante perigos potencialmente graves, haverá medo. Só não se justifica quando todos os dados são conhecidos e a situação esclarecida. Isso não era verdade na altura e ainda hoje, mesmo com muito mais conhecimento acerca do vírus e das suas implicações, há muitas questões importantes por decifrar.

As escolas

O Dr. Dias continua com as suas considerações:

«As escolas nunca deveriam ter sido fechadas. As crianças correm um risco praticamente nulo com esta infecção, e ficam imunes rapidamente, sem sintomas na maioria. Transformam-se em vassouras de vírus a recolher vírus das superfícies que nada lhe fazem e que deixam de estar disponíveis para infectar pessoas vulneráveis.»

Vamos lá ver, pode ser até que o autor venha a ter razão: as crianças parecem sofrer pouco ou nada com a doença, e, mais importante, começa a haver indícios de que podem não ter grande papel na transmissão do vírus, mas a verdade é que o consenso científico está longe de ser claro acerca da eficácia desta medida.

Não faltam críticos à escolha de fechar as escolas, como o Prof. Johan Giesecke, antigo epidemiologista-chefe da agência sueca de saúde, Jennifer Nuzzo, professora da universidade Johns Hopkins, o Prof. Jorge Torgal, em Portugal, ou John Ioannidis, professor de epidemiologia na universidade de Stanford, que, mesmo discordando do fecho das escolas, não argumentou que a medida em si poderia reduzir a taxa de contágio:

School closures, for example, may reduce transmission rates. But they may also backfire if children socialize anyhow, if school closure leads children to spend more time with susceptible elderly family members, if children at home disrupt their parents ability to work, and more. fonte

A ideia que as crianças – mesmo que seja verdade que não são afectadas e não transmitem a doença – possam “vassourar” vírus das superfícies é perfeitamente idiota. Se a ideia é limpar superfícies, então porque não panos impregnados de álcool? O que o país e o mundo precisam é duma campanha de limpeza!

Conclusão

Não há dúvidas que um virus respiratório novo, contra o qual ninguém tem imunidade, que pode levar a quadros clínicos complicados e que, sobretudo, tem menos de meio ano de existência conhecida, suscita dúvidas, questões, receios. A actuação dos diversos agentes é complexa e interligada. Ao contrário do Dr. Dias, para a maioria de nós ter certezas é difícil. E ao contrário do que diz André Dias, a questão não é única e não se limita à mortalidade. Ainda estamos a aprender, tanto em termos do impacto do virus, que pode atacar não só os pulmões, mas os rins, a circulação sanguínea, o coração, o cérebro e outros orgãos, e que pode levar a prolongadas hospitalizações, como no que diz respeito às medidas mais eficientes para lidar com a pandemia.

Decidi escrever estas palavras por ter visto pessoas a partilharem a entrevista do Dr. André Dias e a questionarem-se se ele não teria razão – que tudo não se trata de um equívoco e irresponsabilidade da OMS. A verdade é que, como afirmei no início, quando a quantidade de informação é avassaladora e se de alguma forma essa informação aparenta ser plausível, a dúvida instala-se. O pouco que o autor diz que possa ser relevante está submerso num mar de ideias confusas, com muitos dados e afirmações falsas, e, sobretudo, contribui para desinformar e confundir as pessoas.

Eu também não sou epidemiologista, e por isso não fiz nenhuma proclamação nesse sentido. O que fiz foi questionar todas as afirmações feitas por André Dias. Dá trabalho. É difícil. Leva tempo. Mas é isso que os jornalistas (para não dizer os cientistas) têm obrigação de fazer. E se não sabem, perguntem a quem sabe. Critiquei as afirmações de André Dias, mas critico também os jornalistas: relatar factos com rigor e comprovar esses factos é uma obrigação deontológica do jornalismo; um jornal que preze a ética jornalística deve, no mínimo, considerar se os artigos de opinião que publica não são mera desinformação.

Em último caso deviam ter aberto o curriculum de André Dias e ver se ele tem sequer uma publicação em epidemiologia, se possível em doenças infecciosas (não tem). «A instituição que o acolheu é uma das mais prestigiadas do mundo na área de investigação em epidemiologia.» – isto vale zero. Já agora, todos podemos ter opiniões. E experiência profissional num tema não é garantia de concordância, como todos podemos assistir no debate em curso entre diversos especialistas discordantes. Mas ter trabalho feito num determinado tópico significa que, à partida, se passou tempo a pensar no assunto e se ultrapassou o básico.

Mas no final de tudo, mesmo para quem não saiba nada do assunto, o bom senso dita que se deve, pelo menos, ter uma boa dose de cepticismo perante quem afirma descobrir algo revolucionário, que estava à vista de todos e que ainda assim, ninguém parece ver. Isto quando este é o tópico mais relevante e perscrutado do nosso presente e numa altura em que todos se confrontam com incertezas. E sobretudo quando o faz fazendo proclamações com poucas ou nenhumas fontes ou referências. Já agora, no mesmo espírito, agradeço que me apontem erros e sugiram correcções.

Actualização

28 de Abril – Depois de publicar estas notas, tomei conhecimento de que foram publicadas mais entrevistas e artigos de André Dias noutros orgãos de comunicação social. Os meus comentários não incluem, portanto, nenhuma referência a essas novas publicações.

27 de abril de 2020

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