6 de outubro de 2006

“A camaradagem faz parte integrante da guerra. Tal como o álcool, apoia e conforta os homens obrigados a viver em condições desumanas. Torna tolerável o intolerável. Ajuda a superar a morte o sofrimento, a desolação. Anestesia. Conforta-nos pela perda de todos os bens da civilização que impõe. É justificada pelas terríveis necessidades e amargos sacrifícios. Contudo, separada de tudo isto, exercida apenas por si própria, pelo prazer e intoxicação, torna-se um vício. E pouco importa que traga um pouco de bem-estar. Corrompe e perverte os homens mais que o álcool e o ópio. Torna-os incapazes de uma vida pessoal, responsável e civilizada. É, no fundo, um instrumento de descivilização. (…)
Começando pelo essencial, a camaradagem aniquila totalmente o sentido de responsabilidade pessoal, quer seja cívica, ou mais grave ainda, religiosa. O homem que vive em camaradagem fica liberto de todas a s preocupações existenciais e do duro combate pela vida. Tem uma cama na caserna, comida e o uniforme. O seu quotidiano está pré-escrito de manhã à noite. Não necessita de se preocupar com nada. Deixa de estar submetido à lei do «cada um por si» , mas vive sob a suavidade generosidade do «todos por um». Uma das maiores falsidades reside em afirmar que as leis da camaradagem são mais duras que as da vida civil e individual. Define-se, ao contrário, por um amolecimento e só se justificam para os soldados presos numa guerra inevitável, para homens que enfrentam a morte. Só a ameaça da morte autoriza e legitima esta monstruosa isenção de responsabilidade. E sabe-se que até mesmo os mais corajosos guerreiros, quando repousam demasiado nas macias almofadas da camaradagem, mostram-se incapazes de enfrentar os duros combates da vida civil.
Muito mais grave é o facto de a camaradagem ilibar o homem de qualquer responsabilidade por si próprio, ante Deus e a sua consciência. Fazem o mesmo que todos os seus camaradas. Não lhes resta alternativa. (…) De facto, a camaradagem implica a estabilização do nível intelectual no escalão inferior, acessível ao menos dotado. A camaradagem não tolera discussão.”

Sebastian Haffner, A História de um Alemão

6 de outubro de 2006

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