No final da semana passada, a DGES revelou o número de candidatos ao Ensino Superior (candidaturas à 1.ª fase do concurso nacional). Há cerca de dois anos que ando a tentar ver, ano a ano, se se consegue prever o número de candidatos para se poderem definir melhor as vagas no Ensino Superior público (Partes I, II, e III). No mês passado, depois de ser a lançada a nota do exame nacional de Matemática A, usando o modelo com os dados dos anos anteriores, previ um intervalo de confiança (99%) de entre 37.431 a 42.510 candidatos. Segundo a DGES o valor final, este ano foi de 42.455, praticamente no limite superior do intervalo. No ano passado já tinha verificado a validade do modelo à posteriori, este ano consegui prever o número de candidatos.
Segundo o MEC há 50.820 vagas, 1,2% a menos que no ano passado. Deste modo, com uma ligeira descida do número de vagas e um ligeiro aumento dos candidatos, o diferencial entre candidatos e vagas começa finalmente a descer, sendo que ficarão por preencher 8365 vagas, cerca de 16% do total.
A correlação entre a média dos exames de Matemática A e o rácio do número de candidatos por finalistas (segundo o meu modelo) parece manter-se relativamente robusta. Ou seja, $$ R = p_{1} \times média + p_2 $$ em que \(p_1 = 0.0278\), \(p_2 = 0.1334\) (baseados nos valores de 2000 a 2013) e \(R=\frac{candidatos}{finalistas}\).
Revisitando a minha questão original – tentar construir um modelo que previsse o número de candidatos ao Ensino Superior – a versão actual do meu modelo é então: $$ candidatos = \left( p_{1} \times média + p_2 \right) \times finalistas $$ sendo que os \(finalistas\) do 12º ano são calculados através da propagação dos nascimentos pelos anos de escolaridade, com dois parâmetros que modelam as reprovações e a passagem do Ensino Básico para o Secundário. Esses parâmetros estão descritos em detalhe na Parte I.
Outra forma alternativa de mostrar a mesma informação é precisamente desenhar um gráfico da equação anterior, em que os factores de correcção dados pela correlação (e que variam, ano a ano, consoante a média do exame de Matemática A) ajustam os valores calculados do número de alunos que terminam o Ensino Secundário (para os anos futuros, assumi uma média de 8,5 valores). Os resultados estão representado na linha azul. Como se pode ver, estão muito próximos dos valores oficiais (a preto), o que é já era esperado dada a correlação que encontrei. Ainda não arranjei forma de comparar a minha determinação de alunos finalistas com dados oficiais, mas cada vez mais me parece que a minha estimativa deve estar próxima da realidade, se não em números absolutos, pelo menos na tendência relativa.
A reacçãooficial aos números de candidatos deste ano congratulou-se pelo aumento de candidatos. Se o meu modelo estiver correcto, este ligeiro aumento deveu-se sobretudo a tendências demográficas, já que o nível de facilidade do exame de Matemática A se manteve semelhante ao ano passado. No Público, o jornalista afirma:
Este resultado significa uma inversão na tendência de quebra da procura que se registava desde 2008, pelo que o presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES) acredita que a conjuntura negativa no sector está a ser ultrapassada.
Caro jornalista Samuel Silva: isto não é necessariamente uma inversão de tendência. Uma tendência necessita que haja qualquer coisa que tenda para um lado ou para o outro, por definição, logo uma flutuação não muda necessariamente a tendência. Veja-se, no gráfico acima, o número de candidatos entre 2000 e 2006, com tendência claramente de decrescimento. No entanto, em 2002, 2004 e 2006 houve valores que foram maiores que nos anos anteriores, sem que isso se tenha traduzido numa alteração da tendência. Quanto muito a inversão deu-se em 2006, mas isso só foi possível ser afirmado em 2007.
A crer no meu modelo, no entanto, o jornalista poderá vir a ter razão. Se as médias se mantiverem, e, mais ainda, se aumentarem, há razão para que haja, nos próximos 5 anos, uma ligeira tendência de aumento dos candidatos (qualquer coisas como 7500 a 12500 candidatos a mais, daqui a 5 anos, dependendo da facilidade dos exames). Parece que os factores demográficos estão a dar o último fôlego ao sistema:
A pequena bossa de alunos no Básico no início desta década está agora a passar para pelo Secundário. Note-se que o meu modelo não entra em linha de conta com os efeitos do programa Novas Oportunidades (os desvios enormes, iniciados em 2009, nos dados oficiais da Pordata, mas que nunca observei traduzirem-se em mais alunos a irem para a faculdade). De facto, depois de 2015 a tendência decrescente de alunos no Ensino Básico é assustadora. Essa tendência passará para o Secundário e depois para o Ensino Superior. De notar que só cerca de 50% dos alunos que acabam o Ensino Secundário é que se candidatam ao Superior. Há aí margem para combater a demografia, mas em termos de futuro demográfico do país é meramente um paleativo.
Quando se fala em frequência, ao cientista ou ao engenheiro vem-lhe à mente hertz — a quantidade de eventos por unidade de tempo. Mas frequência também pode significar o acto de frequentar, ou seja, de participar, de assistir. O que não significa é habilitação literária. Como? Sim, isso mesmo. Ora veja-se o que a Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público define como habilitação literária:
Inspirado pelo excelente Malomil decidi fazer um breve estudo epidemiológico acerca de incidência de frequência na Assembleia da República. Consta que alguns deputados passaram a listar nas suas biografias, na secção de habilitações literárias, não só os graus académicos que detêm como aqueles que desejam e, possivelmente, haverão um dia de ter. Em boa verdade ter-se-ão inscrito, mas será que a biografia parlamentar pode ser uma lista de intenções?
Na base-de-dados do parlamento constam as biografias dos deputados à nação desde a VI Legislatura (1994). Decidi percorrer todas elas e ver quais os deputados que têm nas suas habilitações literárias a palavra frequência. Os resultados estão na figura abaixo:
Figura 1 — Número de deputados não-frequentadores e frequentadores por legislatura.
É preciso salientar que a base-de-dados apresenta muitas inconsistências e irregularidades de formatação. Mais ainda, não sei a quem cabe a responsabilidade de manter e validar os dados que são divulgados, mas sendo que se trata da página oficial da Assembleia da República assumo que são dados fidedignos.
Ora, atentando à Figura 1, vemos que a frequência se está a propagar, tendo vindo sempre a crescer, atingindo 49 deputados na actual legislatura. Em termos relativos, atingiu o valor máximo de 18% do total, na última legislatura.
A frequência atinge principalmente os mais novos. No gráfico abaixo mostra-se o número de deputados frequentadores e não-frequentadores por ano de nascimento. Os nascidos antes de 1950 são pouco afectados pela frequência, mas vemos que a incidência da frequência aumenta entre os mais novos, sendo que dos nascidos na década 80, mais de um terço já foi afectado.
Figura 2 — Deputados não-frequentadores e frequentadores por ano de nascimento
Desde Sócrates e Relvas que sabemos que um grau académico pode ser sofregamente desejado. Mas os senhores deputados parecem querer mesmo que se saiba que gostam muito de estudar! Se isto não é admissível num curriculum, porquê aqui?
A bem da verdade, identifiquei pelo menos um caso de erro nos dados da página do parlamento. Por exemplo, Fernando Rosas tem na sua biografia parlamentar a «Frequência de Doutoramento em História Contemporânea». Ora, de acordo com o curriculum na sua página da Universidade Nova, Rosas doutorou-se em 1990, muito antes do seu primeiro mandato de deputado à Assembleia da República, na VIII Legislatura, com início em 1999. Assim sendo, a biografia está errada, mas o erro não é meu.
Rosas é um académico e figura pública, pelo que o seu curriculum é fácil de encontrar, mas não consigo fazer a verificação de forma automatizada para os restantes 76 deputados. Penso que deve haver mais erros. Por exemplo, o antigo Ministro Vieira da Silva tem na sua biografia a «Frequência de Mestrado em Mestrado» e o deputado Michael Seufert uma frequência de Licenciatura e outra frequência de Mestrado. Fica a lista para quem quiser investigar mais.
Num post anterior em que discutia um artigo sobre a vida de um bolseiro, mencionei en passant que havia problemas graves na Ciência portuguesa. Os problemas são complexos e não é fácil ficarmos só com os soundbytes destes de daquelas. A Ciência e Investigação portuguesas estão numa situação conturbada. Assim, vou aqui tentar fazer um ponto de situação na esperança de poder organizar um pouco os pensamentos e para que me possam ajudar a perceber o que se está a passar. Peço antecipadamente desculpa pela extensão do artigo e por erros que possa ter cometido, sendo que agradeço comentários construtivos e esclarecimentos.
Os problemas mais recentes que têm atribulado a Ciência e Investigação portuguesas dizem respeito a três grandes momentos de ruptura iniciados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Como em quase tudo neste mundo, o maior problema é o dinheiro, ou a falta dele, mas enumeremos então estes três momentos:
Concurso dos Investigadores FCT (Dezembro de 2013)
Alteração do formato e número das bolsas de doutoramento e pós-doutoramento (Janeiro de 2014)
Avaliação das unidades de investigação (Junho de 2014)
Contextualização
No artigo anterior fiz uma breve alusão ao progresso que foi feito em Portugal no que diz respeito à política de Ciência, Investigação e Desenvolvimento. Irei contextualizar melhor o estado actual destas áreas, mas começo por citar o que já tinha escrito:
O que se passou em Portugal em termos de política de Ciência e Investigação pode ser, de forma simplista, resumido da seguinte forma: desde meados dos anos noventa houve um grande crescimento no número de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento. Sob a alçada de Mariano Gago, o número de bolsas cresceu exponencialmente. Entre outras coisas, o número de grupos de investigação cresceu e o número de publicações – um dos indicadores usados para medir a quantidade e qualidade da produção científica – aumentou de forma substancial. Portugal está longe de ser uma potência no panorama científico mundial, mas os avanços foram verdadeiramente significativos.
Aqui mostra-se o número de investigadores em Portugal, em comparação com alguns outros países (alguns a que nos queremos comparar, outros a que nos temos de comparar):
Figura 1 – Número de investigadores por milhão de pessoas [1]
Vemos que o crescimento do número de investigadores foi notável nas últimas duas décadas. Estamos ao mesmo nível de valores que se observam em países onde o investimento em investigação e desenvolvimento (I&D) é elevado, como nos Estados Unidos, Reino Unido, ou Alemanha. O financiamento directo em I&D, público e privado, também subiu, de cerca de 0,5% do produto interno bruto (PIB) em 1995 para 1,5% do PIB em 2012 (a descer desde o máximo de 1,64% em 2009). No entanto podemos olhar para o gráfico abaixo e ver que nesta competição já não estamos no topo da tabela, pelo contrário:
Figura 2 – Despesas de investigação e desenvolvimento (% do PIB) [2]
Se fizermos um pouco de aritmética, podemos calcular quanto vale financiamento médio por investigador:
Figura 3 – Financiamento de I&D por investigador (dólares correntes) [3]
Ora aqui vemos que o baixo valor de investimento em percentagem do PIB, aliado ao facto do nosso PIB ser baixo no contexto dos países desenvolvidos, e o número relativo de investigadores ser elevado, traduzem-se numa diluição do financiamento por investigador. O valor médio disponível para um investigador português é metade do que os investigadores espanhóis ou britânicos têm disponível, um terço comparado com os irlandeses. Além disso, se medirmos a produtividade científica (em número de publicações por investigador, mas poderiam ser utilizados outros indicadores como por exemplo o número de patentes), vemos que estamos no fundo da tabela de entre os países aqui comparados.
Figura 4 – Publicações anuais em I&D por investigador [4]
É aqui que se começam a manifestar problemas: dinheiro a menos ou gente a mais, quase de certeza as duas coisas. Se é certo que ninguém pode ser culpado por um terramoto, a verdade é que se as medidas de protecção sísmica não forem implementadas, o cataclismo será sempre maior. E nesse caso há culpados.
FCT – a financiadora
Uma economia moderna baseada no conhecimento requere recursos humanos qualificados, bem como uma infra-estrutura capaz de produzir inovação. Um dos pilares dessa infra-estrutura é a academia e o sistema de investigação e desenvolvimento. A FCT é a grande financiadora nacional do sistema científico nacional, herdeira do Instituto Nacional de Investigação Científica e da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. Portugal tinha um sistema de investigação científica rudimentar e, como já mencionei, com sob alçada de Mariano Gago e outros, o apoio à C&T cresceu de forma extraordinária.
Comparar os fundos que cada país gasta em I&D, de onde vêm e como são gastos nem sempre é fácil. Na Figura 5 estão dados da UNESCO que tentam mostrar isso mesmo. No entanto, o que é definido como gastos em I&D abrange um enorme leque de despesas, desde uma bolsa pública para um aluno de mestrado a uma compra privada dum terreno para construção de um novo centro de desenvolvimento de produto duma empresa.
Figura 5 – Distribuição dos fundos gastos em I&D por origem (coluna da esquerda) e por sector de execução (coluna da direita, riscas). EPSFL – Entidade privada sem fins lucrativos.[5]
Vemos que em Portugal, em 2011, 44% dos fundos para I&D vêm de empresas e 41,8% vêm do Estado. Quanto à execução, essencialmente reflecte a origem dos fundos, sendo que 46,7% são gastos em empresas e o restante é gasto nos sectores do Ensino Superior (Universidades), do Estado (presumo que laboratórios do Estado) e das Entidades privadas sem fins-lucrativos (que podem incluir fundações, ou entidades como os vários INESCs). Na lista das 1000 maiores empresas da União Europeia que investem em I&D Portugal tem apenas seis: PT (ocupando o 142º lugar da tabela), Bial (307º), CGD (367º), EDP (455º), Crédito Agrícola (739º) e Novabase (776º) [6], sendo que CGD é pública, como até há pouco o eram a PT e a EDP. Comparando com os países mais avançados temos um baixo valor da percentagem de investimento em I&D empresarial relativamente ao total dos fundos disponíveis.
Mesmo tendo estes valores em consideração é difícil, para mim, descriminar com exactidão todas as parcelas daquilo que o Estado gasta em I&D. Segundo as diligências do Público, o orçamento da FCT e o dinheiro no sistema científico nacional são o seguinte:
Figura 6 – Orçamento da FCT e dinheiro no sistema científico nacional [7]
Penso, no entanto, que é acertado dizer-se que a grande maioria do financiamento para a Ciência e Tecnologia no contexto académico vem da FCT. Numa perspectiva de financiamento de recursos humanos altamente especializados, a carreira compreende a obtenção de uma licenciatura/mestrado, um doutoramento e potencialmente um pós-doutoramento. Em algumas áreas, sobretudo nas Ciências Naturais e Exactas, é quase sempre necessária a realização de um ou mais pós-doutoramentos antes que um indivíduo se possa candidatar a uma posição de Professor/a numa instituição de Ensino Superior. A FCT é a responsável pelo financiamento da grande maioria destas bolsas.
Figura 7 – Enquadramento mundial do número de investigadores e investimento e despesas em I&D. [8]
Se não há dúvida de que o aumento das bolsas e, por conseguinte, do número de investigadores era absolutamente necessário, há, no entanto, que avaliar esta estratégia. Como se pode observar na Figura 1, por volta de 2008 atingimos um número de investigadores relativo comparável ao de países como a Alemanha, o Reino Unido, ou os Estados Unidos. Esse número deveu-se sobretudo ao crescimento dos doutorandos e investigadores pós-doutorados. Ora estas posições são transitórias e não definitivas, i.e., um recém-doutorado ou procura uma posição na indústria, ou continua a sua formação científica tornando-se investigador pós-doutorado. E no fim dum pós-doutoramento, um investigador, ou vai para a indústria, ou continua na carreira académica, o que implica, mais tarde ou mais cedo, obter uma posição de professor numa instituição do Ensino Superior ou laboratório de investigação. Posto isto, tendo em conta a produção de investigadores em número equivalente ao das economias que já referi, é imperativo que tenhamos uma economia e um meio académico capazes de absorverem essa produção sob pena de ruptura do sistema, ou seja, uma economia e meio académico ao nível dos da Alemanha, Reino Unido ou Estados Unidos. Escusado será dizer que não estamos a esse nível.
Pessoas em excesso
Antes de mais devo dizer que sempre que aqui mencionar a expressão “pessoas em excesso” não estou a dizer que é mau para o país termos o número de investigadores que temos. É clara e absolutamente algo bom para o país. No entanto essas pessoas precisam de um ecossistema científico, de um tecido económico e de financiamento suficiente para que possam desenvolver o seu trabalho. O que aqui vou demonstrar é que o crescimento do número de investigadores não foi acompanhado por essa envolvência. Repito: este não é um caso de “vida acima das possibilidades”, não é o equivalente a andarmos de Ferrari com salário de funcionário público. No entanto é um caso de sub-aproveitamento e potencial falha estratégica.
Consideremos o gráfico acima, em que se observa a evolução do número de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento concedidas pela FCT. Depois de um pico em 2007, o número de bolsas tem vindo a descer de forma continuada, até que no ano passado houve um corte abrupto. As candidaturas às bolsas continuam em número elevado (com as candidaturas às bolsas de pós-doutoramento a crescerem praticamente todos os anos. Ou seja, a taxa de candidaturas aprovadas é cada vez mais pequena.
Os gráficos na Figura 8 encerram em si parte da problemática dos dois primeiros momentos que enumerei no início. Vejamos cada um deles.
Momento 1: concurso dos Investigadores FCT
No gráfico da direita da Figura 8 observamos que as candidaturas a bolsas de pós-doutoramento têm vindo sempre a aumentar com excepção do ano de 2008. À medida que os doutorandos defendem as suas teses, cerca de 4 anos depois de terem iniciado as suas bolsas, aqueles que pretendem continuar a carreira académica candidatam-se a bolsas de pós-doutoramento. Ao longo dos anos o sistema académico e de laboratórios começou a saturar, i.e., começou a ser cada vez mais difícil arranjar posições de professor ou em quadros de laboratórios. Assim sendo, muitos destes investigadores continuam na pool de pós-doutorados. Além disso, com o desenvolvimento de cada vez mais e melhores grupos de investigação, também cresceu a procura por parte de investigadores estrangeiros, muitos dos quais também competem pelas bolsas da FCT.
Quando ainda se julgava que o financiamento seria infinito?
Não sei dizer com toda a certeza, mas suponho que a quebra de candidaturas em 2008 se tenha devido ao Programa Ciência 2007/2008. Em 2007 e 2008 a FCT abriu concurso para a contratação de doutorados, que na versão de 2008 dizia «prosseguindo os objectivos do programa iniciado em 2007 visando a contratação de pelo menos 1000 investigadores doutorados até 2009, a FCT convida as instituições do Sistema Científico e Tecnológico (…) a abrirem (…) concurso» para contratar doutorados «por um período até cinco anos e com financiamento público». Estes contratos não davam posições permanentes, sendo que, em teoria e se tudo corresse bem, se os investigadores tivessem capacidade de se auto-financiar, ou houvesse fundos suficientes, as universidades poderiam vir a integrar muitos deles nos seus quadros no final dos contratos. Ora, os 5 anos destes contratos acabaram em 2012/2013, altura em que, em plena austeridade, estão essencialmente congeladas as admissões na função pública e o dinheiro não abunda. Muitos destes investigadores voltaram à pool dos pós-doutorados, enquanto essa pool continuava a crescer com as formaturas dos alunos de doutoramento.
A título de curiosidade, e sem rigor científico, se fizermos uma regressão exponencial ao número de candidaturas até 2007 e extrapolarmos esse valor para 2008 e 2009, datas das contratações dos doutorados, observamos que “faltam” à tendência exponencial do número de candidatos 643 indivíduos em 2008 e 918 em 2009 (ver gráfico abaixo). Ora o concurso pretendia contratar 1000 investigadores até 2009 (embora, segundo o Público, tenham sido 1200, o que não consegui confirmar) e, segundo a FCT, para a contratação em 2008 foram abertas 657 posições.
Figura 9 – Evolução das bolsas FCT e pós-doutoramento. A linha a traço interrompido é um ajuste exponencial às candidaturas entre 1998 e 2007.[10]
Em 2012 a FCT lança o concurso Investigador FCT, semelhante aos Programas Ciência:
O Programa Investigador FCT visa criar as condições para o estabelecimento de líderes científicos, através da atribuição de financiamento por 5 anos aos mais talentosos e promissores cientistas, em todas as áreas científicas e nacionalidades. O objectivo geral deste programa FCT é permitir o recrutamento de 1000 investigadores excepcionais até 2016, para desenvolvimento de linhas de investigação inovadoras, em centros de investigação portugueses».
Além disso, foram criados diferentes níveis de Investigadores FCT: inicial, de desenvolvimento e de consolidação. Segundo o regulamento de avaliação do concurso, os segundo e terceiro níveis destinam-se a apoiar indivíduos com experiência como investigadores independentes, que se definem da seguinte forma:
Independent researchers are scientists who have already established themselves as internationally recognised experts or leaders in their own right, often as Principal Investigators or Group Leaders, supervising a research team and attracting competitive funding from FCT or other national and international funding agencies.
Em 2012 foram seleccionados 159 investigadores de 1175 candidaturas (13%) e em 2013, 209 de 1480 candidaturas (14%), sendo que nos dois anos 193 foram do nível inicial e 153 do nível de desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, o número de bolsas de pós-doutoramento disponíveis desceu para mínimos equivalentes aos do início do século. A taxa de sucesso dos candidatos rondou os 19% segundo os dados da FCT (que difere do publicado pelo Público, como assinalado no gráfico da Figura 9), valor que nunca tinha sido tão baixo (foi praticamente sempre de 60% ou mais até 2009 e desde então tem vindo a decrescer, em média, 10% ao ano.
Este é um exemplo de pessoas em excesso: o sistema científico não consegue assimilar a produção nacional. O programa Investigador FCT, não se destina necessariamente a recrutar e integrar recém-formados no sistema científico nacional, já que só contrata cerca de 100 novos investigadores por ano e, além disso, são contratos de posições a termo de 5 anos. Segundo o Inquérito aos Doutorados 2009, dos doutorados entre 2000 e 2009 com emprego, 83,1% estavam empregados no Ensino Superior, 13,7% no Estado ou Instituições Privadas sem Fins Lucrativos (p.e., Fundações) e apenas 3.2% em empresas (378 pessoas em 10 anos!). O sistema científico não consegue assimilar a mais a produção nacional (mesmo com posições não-permanentes) e, claramente, o sector empresarial também não.
Já em 2004 o Conselho dos Laboratórios Associados chamava a atenção para a questão do emprego científico:
É firme opinião do Conselho dos Laboratórios Associados que a expansão do número de doutorados deve ser crescentemente acompanhada por políticas pró-activas no domínio do emprego científico. Estas políticas devem traduzir-se no reforço das oportunidades de emprego existentes e na criação de novas oportunidades e novos mecanismos de atracção e inserção profissional de doutorados.
Esta posição resulta da vulnerabilidade, hoje visível, de um sistema de formação avançada sem correspondência suficiente num sistema de inserção profissional adequado e ganha particular relevância num momento em que, à urgência de expansão do número de doutorados em Portugal, corresponde uma elevada procura de doutorados nos países mais avançados europeus e em que existem indícios claros de emigração de talentos (“brain-drain”).
Se o problema já era visível em 2004, dez anos depois, no meio de uma crise financeira, não é exagero dizer-se que o problema atingiu proporções de ruptura.
Momento 2: bolsas de doutoramento e pós-doutoramento.
O segundo grande momento de ruptura foi o do concurso anual de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento. Depois de atrasos, o concurso surpreendeu pelo decréscimo acentuado do número de bolsas quer de doutoramento, quer de pós-doutoramento. Após alguma contestação, a FCT concedeu mais algumas bolsas. Os números são os mostrados na Figura 8.
Sem grande aviso a FCT mudou substancialmente o número de bolsas individuais, que eram o principal meio de angariar e financiar o recrutamento de estudantes e bolseiros para fazerem doutoramentos e pós-doutoramentos. Relativamente aos doutoramentos a FCT passou a privilegiar os denominados Programas de Doutoramento, cujos concursos para aprovação começaram em 2012 e foram avaliados por painéis internacionais (nos dois anos, de 450 propostas, foram aprovados 96 programas doutorais). Na página da FCT podem obter-se as justificações para a criação de programas de doutoramento – em que o potencial bolseiro se candidata directamente ao programa – ao invés de se manterem exclusivamente as bolsas individuais – em que o candidato submete um projecto de investigação a um concurso nacional, conjuntamente com um orientador e associado a uma instituição, sendo depois classificado e seriado. Não sei exactamente quais são os benefícios e os detrimentos dos programas doutorais. Se em alguns casos é óbvio que as sinergias entre vários instituições e/ou empresas podem criar programas especializados em determinados temas, noutros parece que não passa de uma mera reorganização. Algumas das críticas passam pelo facto de esta manobra pretender realocar fundos e bolseiros para áreas definidas exclusivamente pela FCT, [11] ou pelo facto de uma avaliação que recorre a painéis internacionais genéricos é pouco transparente e manifestamente insuficiente. [12] Por exemplo, no Painel de Avaliação de 2012 para a área Ciências Exatas e da Engenharia, há um só físico. Não sei comentar no caso do painel de 2013 porque retiraram os cargos da listagem pública dos avaliadores e não tive paciência de ir procurar caso a caso.
Relativamente às bolsas de pós-doutoramento, mesmo com uma pequena correcção e subsequente aumento do número final de bolsas atribuídas, o decréscimo foi muito acentuado. Já fiz a grosso da análise deste decréscimo na descrição dos concursos Investigador FCT acima. Em jeito de adenda, um pós-doutoramento é um período em que um investigador produz ciência sem ser aluno, mas ainda não é um investigador autónomo. É comum em muitas áreas académicas (p.e. Ciências Exactas e Naturais, mas quase inexistente em áreas como a Economia) e surgiu – na academia mundial, não só em Portugal – como forma de obter uma sub-especialização, mas também para fazer face ao número crescente de doutorados perante a escassez de posições permanentes de professor ou investigador. Concorde-se ou não, é um facto de que os post-docs são parte substancial da massa humana que faz o trabalho de investigação.
O Público recolheu, em Abril de 2014, todos os artigos e comentários publicados no jornal acerca destes dois momentos. Muitas das citações que aqui uso vêm neste compêndio, que pode ser acedido aqui.
Momento 3: avaliação das unidades de investigação
O mais recente momento de tensão entre a FCT e a comunidade científica é a avaliação aos grupos e centros de investigação. Estas unidades de investigação agregam, dentro das universidade, associadas a universidades, ou juntando várias universidades, investigadores e bolseiros de investigação, sendo a forma principal de como a maioria dos investigadores se organizam. Sendo que os Professores tipicamente tem os seus salários pagos pelos vínculos à universidade, as unidades de investigação albergam outros investigadores não vinculados (investigadores associados, pós-doutorandos e outros bolseiros), muitas vezes contratando-os, e permitem a aquisição e manutenção de instalações e equipamentos, como laboratórios. Em alguns casos, estas unidades providenciam serviços externos, como a manutenção de arquivos ou a publicação de periódicos.
Parte do financiamento destas unidades vem da FCT. Há várias modalidades de financiamento e durante muitos anos uma parte estrutural das subvenções vinha do Financiamento Plurianual. Além de financiamento base, os investigadores podem e devem angariar outros fundos através de projectos FCT ou projectos europeus, e ainda, possivelmente, através de financiamento industrial, por colaborações, serviços prestados ou donativos.
Regularmente, estas unidades de investigação são sujeitas a avaliações conduzidas por painéis de avaliadores externos (cientistas que exercem foram de Portugal e reconhecidos como especialistas nas áreas). Por exemplo, a avaliação de 2007 está bem documentada, com os resultados individuais de cada unidade publicamente divulgados. Além de influenciar o financiamento, as notas das avaliações são também usadas como classificadores do mérito das unidades de investigação, influenciando, por exemplo, a obtenção de bolsas FCT de doutoramento e pós-doutoramento, em cujas candidaturas o mérito da instituição de acolhimento é um factor de ponderação na classificação final.
Em 2013 a FCT recolheu os pacotes relativos à avaliação do período de 2008–2012, sendo que recentemente foram divulgados os resultados da primeira fase. Desta vez, a avaliação é bietápica, sendo que da segunda fase ficam de fora as unidades com piores resultados (Insuficiente, Razoável ou Bom), sendo que só às unidades com avaliação de nível Bom, Muito Bom, Excelente ou Excepcional serão atribuídos fundos de Financiamento Base, e só acima de Muito Bom é que potencialmente haverá Financiamento Estratégico.
O grau Excepcional é novo, assim como a forma de constituição dos painéis de avaliação. Desta vez a FCT optou por um outsourcing da gestão da avaliação contratando a European Science Foundation (ESF) para tomar conta do processo. Se é um facto que a ESF tem experiência na constituição de comités de avaliação externos, também é verídico que nunca se ocupou da avaliação de todas as unidades de investigação de um país inteiro. Na página da ESF há uma secção dedicada exclusivamente a este processo de avaliação, sendo que mais nenhum outro processo de peer reviewing é digno de tal distinção. Outra das diferenças é o facto dos avaliadores serem essencialmente (exclusivamente?) europeus e baseados na Europa; há um só membro do painel cuja actividade é exercida nos EUA. Ao contrário de avaliações anteriores, não há visitas às unidades de avaliação durante a primeira fase.
Para este processo de avaliação, a FCT anunciou uma consulta pública limitada a duas semanas em Março de 2013, sendo que só anunciou que a avaliação iria ser feita pela ESF em Fevereiro de 2014. Esta situação suscitou imediatamente críticas do Conselho dos Laboratórios Associados (CLA) pela falta de transparência do processo, nomeadamente na alteração dos procedimentos de avaliação e no facto de não se conhecerem os termos do contrato com a ESF, classificando-a como «uma organização sem experiência na matéria, em graves dificuldades e em vias de extinção». [13]
Com a saída dos resultados da primeira fase surgiram violentas críticas. Resumidamente, 22% das unidades tiveram nota negativa e 26% tiveram Bom, sem possibilidade de passagem à segunda fase. 52% das unidades (representando 66% dos investigadores avaliados) passam à segunda fase, sem que isso seja garantia de nota final superior a Bom.
Algumas das críticas iniciais afirmam que estes resultados ditam o fim destas unidades de investigação. As unidades com avaliação Insuficiente ou Razoável não recebem financiamento base e as unidades com Bom, têm financiamento máximo de €500/investigador/ano para uma unidade de baixa intensidade laboratorial ou de €1000/investigador/ano para uma de elevada intensidade laboratorial. Além disso, as notas, como já referi, têm influência na candidatura a projectos FCT e a bolsas individuais. Assim sendo, é provável que estas unidades deixem de receber qualquer financiamento da FCT nos próximos tempos.
A avaliação tem tido muitas críticas. Deixou aqui as três principais realçadas pelo CLA:
a) Subverter a relação entre avaliação e financiamento de base dos centros de investigação.
Pelas novas regras, uma instituição que tenha sido julgada “apenas” boa passará a receber um financiamento de base residual (que pode atingir um décimo do que antes tinha). Ou seja, será, na prática, extinta. Este propósito, mantido escondido enquanto possível, ignorou a crítica generalizada dos cientistas e das Universidades.
Pode um sistema científico funcionar sem um grande número de centros de investigação reconhecidamente de boa qualidade, embora não excepcionais? Não pode, em parte alguma do mundo. É essa mesma a definição de excepcionalidade. Mais: pode um País permitir que, de acordo com esta lógica, áreas científicas inteiras possam desaparecer em Portugal, porque as suas instituições são apenas boas (mas não excepcionais)? Claro que não.
Assim, a irresponsabilidade política desta ruptura, a concretizar-se, terá por consequência amesquinhar o País e privá-lo de competências que laboriosamente conseguiu criar.
b) Destruir um modelo de painéis de avaliação baseado na competência especializada dos seus membros.
Onde até agora eram constituídos painéis internacionais de avaliação especializados de alto nível (cerca de 25, de forma a que cada painel reunisse especialistas capazes de se pronunciarem em profundidade sobre o trabalho científico das instituições portuguesas) hoje pede-se a seis (6) painéis estruturados por grandes áreas que avaliem as nossas instituições especializadas.
Em muitos casos, do painel não consta um único especialista da área da instituição a avaliar. Há casos em que o único especialista presente não teria sequer currículo para ser contratado pela instituição que vai avaliar.
c) Minar a confiança na avaliação
No sistema até agora em vigor, os avaliadores, além de estudarem a documentação escrita que lhes era facultada pelos avaliados, visitavam todas as instituições a avaliar de forma a poderem conhecê-las e esclarecer as suas informações em contacto directo com os avaliados. Deixa de ser assim: doravante, passam a ser visitados apenas os centros que, no papel, tiverem sido avaliados como melhores que “bons” embora mesmo estes possam vir nesta 2ª fase a ser avaliados com classificação de bom ou inferior.
A avaliação prévia, apenas de papel, passa assim a eliminatória, com base em pareceres de peritos anónimos e da decisão final de um painel generalista.
A 11 de Julho, a FCT emite um comunicado a defender o rigor da avaliação e a competência da ESF afirmando:
O exercício de avaliação decorre com total transparência, rigor, isenção e no cumprimento das melhores práticas internacionais que a FCT preconiza e que a ESF tem extensamente descrito e aplicado em numerosos exercícios de avaliação.
no entanto, só mediante pressão é que, uma semana depois, divulga o contrato com a ESF em que afirma que:
Stage 1 evaluation will result in a shortlist of half of the research units that will be selected to proceed to Stage 2.
Embora não haja uma estipulação de quotas por graus de avaliação, na prática esta indicação limita o número mínimo de notas iguais ou inferiores a Bom, já que só passariam à segunda fase unidades que tivessem classificação superior a Bom, i.e., um valor ≥ 15, numa escala de 4 a 20. A FCT reagiu afirmando que o valor de metade das unidades de investigação foi meramente indicativo, baseado na anterior avaliação. [14] A frase citada acima não é uma mera orientação, é o remate dos princípios gerais de avaliação da primeira fase. Ora isto é grave porque na prática, por decreto, não autoriza uma melhoria relativamente à avaliação anterior. Uma avaliação independente e transparente não pode ser condicionada ou guiada desta forma; se verdadeiramente metade das unidades é má, partindo do princípio que a avaliação é competente, então esse diagnóstico aparecerá necessariamente na conclusão da avaliação.
Fico-me por aqui no que diz respeito a este terceiro momento. Embora ainda não haja uma compilação de artigos como a que fez o Público em Abril e já mencionei, acima, não é difícil encontrar os artigos e manifestos que têm vindo a público relativamente a este assunto.
Conclusão
No espectro das opiniões sobre o estado actual da Ciência Portuguesa há dois extremos: o primeiro afirma que é preciso continuar a investir mais, formar mais, dar mais bolsas. O segundo afirma que já formámos gente suficiente, mas que essa gente não é nem cientifica- nem economicamente produtiva o suficiente. Esta segunda perspectiva é representada nas declarações do Ministro Pires de Lima: [15]
Uma boa parte da investigação é financiada por dinheiros públicos e não chega à economia real. Não chega a transformar o conhecimento em resultados concretos que depois beneficiem a sociedade como um todo
Em síntese: temos muitos investigadores mas com baixa produtividade.
Convenientemente ou por ignorância, não referem que os investigadores portugueses também são dos mais mal-financiados (Figura 3), ou que os doutorados não são contratados por empresas, não por escolha própria, mas porque não temos tecido empresarial que os assimile. E que não é de um dia para o outro que passamos a ter uma economia baseada no conhecimento.
Do outro lado temos o campo que também não reconhece que há que construir um sistema que absorva tantos doutorados e investigadores, e que não devem ser produzidos a ritmos descompensados – os «defensores da primavera rosa [que] parecem ter a vista obnubilada pelo brilho dos powerpoints».[17] Num sistema de financiamento em que há dinheiro a mais dum lado e a menos do outro criam-se assimetrias que, se deixadas por compensar, conduzem a situações de insustentabilidade. Além disso, do lado da abundância, criam-se também oportunidades para florescerem aqueles que não teriam lugar em situações de maior competitividade e exigência. Ao contrário do que dizem a ABIC [18] e Maria de Lurdes Rodrigues, os doutoramentos ou pós-doutoramentos não devem ser emprego ou forma de sustento, muito menos devem ser «o principal mecanismo de (…) [assegurar] a renovação de gerações (…) e a estabilidade das atividades de investigação». [19]
Nos últimos 15 anos, Portugal conseguiu fazer um caminho com o aumento do investimento em ciência, quer público quer privado, e obteve bons resultados. De quem foi o mérito? O primeiro é um demérito, já que partimos muito de baixo. O segundo foi a capacidade de projectar o futuro do [ex-ministro da Ciência e Ensino Superior] Mariano Gago, que foi instrumental para desencadear e consolidar esta aposta. O terceiro mérito foi dos ministros do PSD que tiveram a pasta da Ciência. Nunca perturbaram esta estratégia, o que é uma coisa raríssima em Portugal.
O que falhou? Não conseguimos que as universidades e politécnicos contratassem tantos doutorados e pós-doutorados nos seus quadros como gostaríamos. E isto tem uma consequência, sobretudo numa fase de crise, porque eles não estão a encontrar emprego.
Falhou mais: não é só a falta de contratação pelas universidades e politécnicos; há uma falta de estratégia política e económica concertada, que transvase o sistema académico e envolva o tecido económico industrial. Há todo um empurrar dos alunos pelo pipeline dos graus académicos, desvalorizando os graus e os percursos daqueles permanecem só porque não têm para onde ir. [20] Mas mesmo em relação ao sistema académico, mesmo antes destes cortes, qual é o modelo que queríamos, qual é o modelo que queremos? Quando se financiou um número enorme de bolsas, qual era a estratégia seguinte? Havia estratégia? Ou simplesmente considerou-se que ao atingirmos uma massa crítica de investigadores, que o sistema se organizaria automatica e espontaneamente?
Em certa medida parece que a FCT identificou este problema do excesso de pessoas relativamente à dimensão do sistema científico nacional, tentando racionalizar os fundos, identificar e valorizar os componentes mais valiosos do sistema e apostar nos melhores indivíduos. Se é certo que não cabe à FCT criar um tecido empresarial que faça mais I&D e recrute investigadores, ou resolver todos os problemas relativos ao emprego científico, é a ela que cabe financiar uma parte do sistema e portanto tem uma palavra a dizer. Há uma filosofia por detrás das acções recentes da FCT e que tem sido verbalizada sobretudo por Miguel Seabra, presidente da FCT, Leonor Parreira, secretária de Estado, e António Coutinho [21] (com notável ausência do Ministro Nuno Crato): a de que é preciso excelência e que a excelência vem de investir nos excelentes; há que cortar o que está mal, sem grande piedade, deixando secar as raízes das ervas daninhas. E em grande medida isso é verdade.
Reformar um sistema é sempre difícil e haverá sempre contestação, justa ou injusta. Em certa medida haverá até danos colaterais indesejados, mas inevitáveis. Com estas medidas tomadas pela FCT parece que resolveram antecipar a contestação com uma operação do tipo shock and awe, levando tudo à frente sem dar grande espaço para que se respire. Mesmo que em termos de valores totais não haja um grande decréscimo de financiamento, em termos do número de destinatários desses fundos (sejam bolseiros ou unidades de investigação) há uma sangria brutal.
Além das críticas feitas à FCT que já referi, o coro não fica por aí: há acusações de falta de envolvimento da comunidade na negociação do financiamento comunitário, [22] ou na estratégia da definição de bolsas, [23] ou ainda na falta de envolvimento das instituições responsáveis por acolher os Investigadores FCT [24] ou os doutorados. [25] Os constantes atrasos nos concursos, admitidos pela própria FCT, [26] os cortes e atrasos nos financiamentos [27] e a burocracia da organização [28] são também fonte de repetidas queixas e reclamações.
É certo que há problemas no sistema científico e de I&D português. Mesmo que se deitasse mais dinheiro no sistema, há questões de qualidade ou de emprego científico que não seriam solucionadas, de forma sistémica, só por haver mais financiamento. Estes problemas requerem manobras com visão estratégica, uma discussão alargada e uma transição delicada. As movimentações promovidas recentemente pela FCT são, em quase todos os aspectos, o contrário disso.
Dados do Banco Mundial – Researchers in R&D (per million people) ↩
Dados do Banco Mundial – Research and development expenditure (% of GDP) ↩. Dados de 2012 actualizados com valores da Pordata.
Dados dos gráficos acima (Banco Mundial). Foram ainda utilizados os valores do PIB e da população (também Banco Mundial), para calcular o valor total de financiamento em I&D (em dólares correntes) e o número total de investigadores por forma a obter-se a estimativa do valor do financiamento por investigador). ↩
Dados do Banco Mundial: dividiu-se o número de publicações ( Scientific and technical journal articles ) pelo número total de investigadores ( Researchers in R&D (per million people) e Population (total)). ↩
Dados da UNESCO (Science,technology and innovation: Gross domestic expenditure on R&D by source of funds and by sector of performance).
Anos dos dados: Suíça 2008, Israel 2010, Alemanha, Itália, Portugal, Espanha e Suécia 2011, Irlanda, Polónia, Reino Unido e Estados Unidos 2012. ↩
«O problema das bolsas (ou falta delas) da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) não surgiu há uns dias, começou nos programas doutorais, com orçamentos milionários, que são os flagships da FCT na era de Miguel Seabra. Quem quiser saber quais foram as “subsubáreas” da ciência e da tecnologia que a FCT de Miguel Seabra decidiu financiar com estes programas de doutoramento milionários, estão todas aqui.
É claro nesta listagem e nos resultados dos concursos de bolsas recentes que os temas que ganharam a lotaria dos programas de doutoramento da FCT são claramente minoritários, que estes programas doutorais minoritários são a aposta para os próximos anos em detrimento das bolsas de mérito individual, como o próprio primeiro-ministro foi levado a defender no Parlamento, que em todos os outros temas ficou um deserto de bolsas, pois a FCT gastou a maior parte do seu orçamento nestes programas e noutros projectos de âmbito muito restrito, e que os temas que foram excluídos correspondem à maioria da ciência e da tecnologia.» – Pedro Bicudo inPúblico ↩
«1) Foram criadas escolas doutorais ad hoc, transversais à estrutura das universidades, com a consequência de que o encaixe entre essas escolas e o que já existe se tornou muito difícil senão mesmo impossível para um grande número de casos. Ao se ler o edital, era então já óbvio perceber qual seria a dificuldade. Mas esta viria a ser ignorada, senão mesmo agravada, pela actuação do júri convocado para decidir destas escolas. Não só não houve preocupação em dar suporte a estruturas existentes, com provas dadas, mas foram as novas escolas atribuídas a esta ou aquela área científica de uma forma casuística e conforme as apetências desse júri.
2) Brada aos céus a maneira como este júri foi constituído. O júri do concurso para as escolas doutorais foi assegurado por 17 [nota minha: este número não parece ser válido] pessoas apenas, tendo estas que emitir uma opinião sobre a totalidade do pensamento humano, indo da literatura à astrofísica e da história à biomedicina. Estes membros do júri pelos vistos não se envergonharam de decidir sobre matérias (e áreas inteiras!) sobre as quais eram completamente ignorantes, o que por si só é de um exotismo nunca antes visto.
3) Finalmente, e relacionado com as bolsas individuais, tendo as bolsas atribuídas às escolas doutorais sido possivelmente retiradas do conjunto das bolsas de concurso nacional, não era difícil prever que os melhores alunos que se não encaixassem nesta nova moda de programas doutorais, poderiam vir a não receber bolsa. Foi o que aconteceu no caso dos dois alunos excepcionais referidos acima do curso de Mestrado em Engenharia Física Tecnológica do Instituto Superior Técnico.» – José Sande Lemos inPúblico ↩
Comunicado do Conselho dos Laboratórios Associados à FCT sobre a avaliação das Instituições de Investigação. ↩
«O PÚBLICO questionou novamente a FCT sobre a definição prévia de uma quota de sucesso. A fundação, através da sua porta-voz Ana Godinho, justifica que aquele valor dos 163 centros era apenas “uma estimativa” feita com base na avaliação de 2007: “[Nessa altura] cerca de 50% das unidades teve Mau, Razoável ou Bom.”» inPúblico ↩
«Uma boa parte da investigação é financiada por dinheiros públicos e não chega à economia real. Não chega a transformar o conhecimento em resultados concretos que depois beneficiem a sociedade como um todo», afirmou o ministro (…). Pires de Lima disse não ser possível «alimentar um modelo que permita à investigação e à ciência viverem no conforto de estar longe das empresas e da vida real», referindo o elevado nível de doutorados ‘per capita’ em Portugal por oposição ao baixo número de doutorados nas empresas. inExpresso ↩
Uma das “verdades sagradas” do actual debate é a de a Ciência produzida em Portugal ser de alta qualidade. (…) Infelizmente, se há em Portugal muitos centros de excelência, o resultados geral do sistema é pouco mais do que mediano, quando não medíocre. Basta pensar no seguinte: no nosso país existiam em 2012 9,2 investigadores por cada 1000 activos, uma percentagem que nos colocava em quinto lugar na Europa, logo atrás dos países nórdicos.
Porém, se considerássemos o indicador compósito do Eurostat para a excelência em ciência e tecnologia (um indicador que integra variáveis como o número de publicações científicas ou de patentes), Portugal caía para 19.º lugar, sendo mesmo o pior dos países do Sul da Europa. Em síntese: temos muitos investigadores mas com baixa produtividade. inPúblico ↩
«O primeiro equívoco tem a ver com a forma como se olha o que se fez nos últimos 10–15 anos em Portugal em termos de política científica. Há como que uma miopia de direita e uma miopia de esquerda. À esquerda, há quem acredite que foi o melhor dos mundos. Financiamento recorde, crescimento exponencial dos principais indicadores, aproximação a galope dos países mais desenvolvidos. À direita, há quem fale de “obscurantismo” provocado por uma política estatal insustentável a longo prazo, apontando como solução a “universidade”. Não vêem o óbvio. Aos “iluminados” da nossa extrema-direita, fechados no seu Portugal dos pequenitos, falta-lhes mundo. Em país algum ficou jamais uma política científica digna desse nome a cargo da “universidade”? (…) Já os defensores da primavera rosa parecem ter a vista obnubilada pelo brilho dos powerpoints. Parecem não querer ver que uma bolsa não é um emprego. E que para criar empregos é necessário ir contra interesses instalados, já para não falar nos modos de fazer e de pensar clientelares tão profundamente enraizados entre nós. Este foi, provavelmente, o erro mais grave dos últimos 10–15 anos. Em vez de se começar a abrir as universidades ao mérito e ao esforço, entrelaçando ensino e investigação, e de se criar incentivos às empresas para contratarem pessoal qualificado, optou-se por criar um sistema de laboratórios associados paralelo às universidades, um sistema tão moderno quanto efémero. Perdeu-se com isto uma oportunidade de ouro para se efectivamente modernizarem as universidades. Pior: criou-se uma situação em que ao primeiro abalo todo o sistema soçobraria, deitando a perder o investimento de centenas de milhões de euros entretanto realizado. É esta a situação em que agora nos encontramos. Uma reforma por fazer, investimento em risco de se perder e pouca clarividência sobre as razões das nossas dores.» Filipe Carreira da Silva inPúblico ↩
«É inaceitável admitir-se simplesmente que milhares de candidatos se vejam agora sem emprego e sem forma de sustento, sendo muitos obrigados a desistir de trabalhar na investigação ou forçados a emigrar», Associação dos Bolseiros de Investigação Científica inPúblico ↩
«As bolsas de doutoramento e pós-doutoramento têm sido o principal mecanismo de promoção do emprego científico, assegurando a renovação de gerações, a mobilidade dos investigadores e a estabilidade das atividades de investigação. Reduzir tão drasticamente o número de bolsas significa reduzir drasticamente as condições para a renovação de gerações, para a mobilidade dos investigadores e de estabilidade das instituições. Ocorre perguntar se o Governo criou um novo instrumento de política para garantir tais condições. Não sabemos.» Maria de Lurdes Rodrigues inPúblico ↩
«Numa dada altura da minha vida académica (e ainda hoje) fui (e sou) contra o “processo de Bolonha”, não contra as (boas) intenções da “declaração” assinada em 1999 na cidade italiana onde surgiu a primeira universidade europeia, mas pela virtualidade trágica que ela já continha e que se veio a desenvolver. No fundo, está nela a potencialidade de fazer com que os estudantes permaneçam no ensino superior o mais tempo possível. Se a licenciatura — pouco exigente — não serve para nada, caminha-se para o mestrado, naturalmente menos exigente do que no passado. E como o mestrado para nada serve segue-se para o terceiro ciclo, o doutoramento, onde quase todos os estudantes podem entrar, em muitos casos não para obter uma habilitação que lhes dê acesso a um emprego ou à investigação científica, para que se sentem vocacionados, mas porque, com ilusões ou já desiludidos, não conseguiram nenhum trabalho anteriormente. Assim, vão coleccionando graus, passando finalmente da situação de doutorados para pós-doutorados e daí, por vezes, para a “sensação de incompetência” (…), que os leva a ter de procurar um outro lugar fora da ciência ou da profissão que queriam escolher, em Portugal ou no estrangeiro, onde, todavia, em alguns países, há mais possibilidades de trabalho científico.» Luís Reis Torgal inPúblico ↩
«(…) o sistema científico português precisa de alterações: “A mudança tem de ser feita com jeito, com cuidado. Mas alguma coisa tem de ser feita”. Mas até que ponto a ciência do país já está pronta para apostar quase só na excelência? “A excelência costuma gerar excelência”, responde António Coutinho. “Por outro lado, a mediocridade gera sempre mediocridade. Nunca sai excelência. Usar dinheiro público para apoiar a mediocridade é sempre uma má política.”» inPúblico ↩
«O CLA lamenta (…) que para o acordo de parceria entre Portugal e a Comissão Europeia sobre os novos fundos estruturais europeus (Feder e o Fundo Social Europeu), entre 2014 e 2020, não foram ouvidas nem as universidades nem as instituições científicas – “à revelia das normas nacionais e comunitárias” e “supomos que pela primeira vez desde que Portugal aderiu à CEE”.» inPúblico ↩
«A estratégia que terá resultado nesta redução não foi previamente anunciada nem debatida com a comunidade científica, tendo trazido instabilidade ao sector"» – Comunicado de Imprensa do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia inPúblico ↩
«E no concurso para novos investigadores FCT, também as universidades e as instituições científicas ficaram de fora da avaliação e selecção dos cientistas que depois podem vir a ser obrigados a receber.» inPúblico ↩
«O CLA critica ainda os “moldes inaceitáveis” dos novos doutoramentos. Abriram-se candidaturas para programas de doutoramento sem consultar as universidades, as instituições que afinal atribuem estes graus. “As universidades tiveram dois ou três meses [para se candidatarem], mas isso é muito pouco quando se quer conceber um programa de raiz e com parcerias internacionais”, critica Quintanilha.» inPúblico ↩
«Com as pressões existentes, se tivéssemos feito com os painéis aquilo que gostaríamos de ter feito, o que evitaria algum desconforto, demoraríamos mais um mês a publicar os resultados» inPúblico ↩
«“Os cortes de financiamento em 2013 variaram consoante o laboratório associado, mas foram de entre 20 a 45%. A maioria deles só começou a receber aquele financiamento a partir de Setembro de 2013.” Nessa altura, a dívida total das 26 estruturas já ascendia os 10 milhões de euros, segundo Alexandre Quintanilha.» inPúblico ↩
«“Cortes desta natureza são devastadores”, diz o biólogo e ex-director do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto. Alexandre Quintanilha explica que as baixas execuções orçamentais se deveram ao aumento da burocracia, que deixou a tesouraria de muitos laboratórios no “vermelho”: devido ao atraso dos pagamentos da FCT, as dívidas cresceram para alguns milhões de euros. Por isso, as instituições não podiam fazer mais despesas e os orçamentos não eram gastos completamente. Na reunião, os governantes justificaram a burocracia como uma situação “imposta por outros ministérios”, conta o biólogo.» inPúblico ↩
O Mundial foi catastrófico para o Brasil. Não só perderam em casa, como nem sequer chegaram à final, sem nunca terem jogado um futebol inspirador. Foram humilhados pelos vencedores, a Alemanha, num jogo que acabou em 7–1. Deixaram o Ronaldo perder o recorde de melhor marcador dos Campeonatos do Mundo para Klose, um alemão (e Müller já com 10 golos, conta com 24 anos; se tiver a mesma sorte de Klose, pode ainda ir a dois mundiais). E pior de tudo, a Alemanha tem agora 4 títulos de campeã do mundo – um a menos que o Brasil. Quatro anos é muito tempo e ainda é cedo para apostar, mas tendo em conta o calibre da derrota brasileira, é possível que no mundial russo estejam os alemães mais próximos do penta do que os brasileiros do hexa. Se assim for, não sei quais são o Carmo e a Trindade lá do sítio, mas também devem cair.
Para Portugal, a prestação na competição não foi muito mais honrada. Todos sabemos o que se passou. Que venha o próximo. Mas será que vamos ter problemas? Quando se discutem estes assuntos, há sempre a velha questão de não termos jogadores portugueses nas equipas portuguesas. Há dois aspectos a considerar: um deles é que quando os jogadores se dispersam pelo estrangeiro, tendem a ficar dispersos por várias equipas. O gráfico abaixo mostra, em cada Europeu e Mundial desde 1996, o número de jogadores contribuídos pelos dois (cores escuras) ou três (cores escuras + claras) clubes mais representados na selecção de Portugal (a verde) ou na selecção vencedora (a vermelho).
Número de jogadores contribuídos pelos 2 (cores escuras) ou 3 (cores escuras + claras) clubes mais representados na selecção de Portugal (a verde) ou na selecção vencedora (a vermelho) nos Europeus e Mundiais desde 1996.
Embora não seja necessariamente algo obrigatório (vide a França de 1998, ou o Brasil de 2002), a verdade é que nos últimos dez anos, as equipas vencedoras têm pelo menos metade dos 23 jogadores seleccionados a vir de 3 clubes diferentes, senão de apenas dois. A Espanha, no Mundial de há quatro anos, tinha 12 jogadores a vir do Barcelona e do Real Madrid, e mais 4 do Valência. Este ano a Alemanha tinha 7 jogadores do Bayern de Munique, 4 do Borussia Dortmund e 3 do Arsenal. Pelo contrário, na nossa selecção, o clube mais representado foi o Real Madrid, com 3 jogadores, e os 3 clubes que mais contribuíram fizeram-no com apenas 7 jogadores.
Este é, no entanto, um problema praticamente insolúvel: os nossos melhores jogadores serão sempre vendidos, tanto por razões financeiras, como por motivação de quererem jogar em ligas mais competitivas. Ainda assim, com a formação que tivemos, conseguíamos manter jogadores durante 2–3 épocas antes de partirem rumo a novas paragens. Conseguíamos fazer com que houvesse jogadores suficientes a serem lançados.
O outro aspecto a considerar é o de que de há uns anos para cá o número de portugueses a jogar nas equipas nacionais, sobretudo nos três grandes, é assustadoramente pequeno. Na época passada o Sporting tinha 9 portugueses, o Porto 5, e o Benfica 6 dos quais só metade tinha menos de 26 anos. A liga portuguesa, além de formar jogadores nacionais, também tem sido trampolim para muitos jogadores sul-americanos. Mas nos dias que correm o número de jogadores desta zona do mundo é muito grande. Só para termos uma ideia, no mundial que acabou, olhando só para os futebolistas centro- e sul-americanos que se estrearam na Europa em clubes portugueses havia 12 jogadores, de entre os quais o melhor marcador do torneio e 3 presentes na final, sendo que todos eles progrediram mais que a selecção portuguesa (James Rodriguez, Jackson Martinez, Hulk, Ramires, David Luiz, Fucile, Maxi Pereira, Angel Di Maria, Enzo Pérez, Ezequiel Garay, Diego Reyes, e Hector Herrera), não contando com outros como Falcao que se lesionou, ou ainda jogadores quer doutros países (Mangala, Nabil Ghilas, Islam Slimani), quer sul-americanos mas que não se estrearam em Portugal (Marcos Rojo, Juan Quintero).
Mais: a selecção portuguesa está velha. Dos 23 jogadores, só 3 tinham menos de 26 anos de idade (nenhum titular indiscutível e o Rafa nem saiu do banco de suplentes). Em comparação, a Alemanha tinha 14 jogadores com 25 ou menos.
É pouco provável que algum dia tenhamos uma liga suficiente atractiva para nos permitir reter muitos dos melhores jogadores no nosso país. Mas sempre tivemos capacidade de formar jogadores talentosos, sendo que parte dessa formação consiste em lançá-los no nosso campeonato, permitindo-os jogar competitivamente. Mas isso está a deixar de acontecer. Talvez essa seja uma necessidade para termos clubes capazes de lutar nas provas europeias, e é possível que simplesmente não haja talento suficiente em Portugal agora. Mas também é possível que seja uma opção financeira de maximizar lucros, indo buscar jogadores muito baratos em vez de os formar. Um Figo, um Rui Costa, ou um Cristiano Ronaldo, saindo, sempre voltam para, pelo menos, jogar na selecção, mas os Di Maria, Garay ou James Rodriguez já não regressam para nada. E uma coisa é certa, sem jogadores nacionais não há selecção.
Desde há dois anos que, perante o desfasamento entre o número de candidatos ao Ensino Superior e as vagas disponibilizadas, venho fazendo uma pequena análise (partes I e II) para perceber a capacidade de prever o número de estudantes no Ensino Superior através da natalidade.
O objectivo era perceber se desse modo se poderia dimensionar melhor a oferta de vagas (descrição na parte I). Fiz um modelo para prever o número de alunos que termina o ensino secundário a cada ano, mas concluí que esse parâmetro por si só não é suficiente. No entanto, a correlação com a nota do exame de Matemática A revelou-se bastante significativa, por motivos que não sei esclarecer:
Este ano, já foram reveladas a média do exame de Matemática A (7,8 valores, na primeira fase) e o número de vagas, segundo o ministro da Educação, não vai aumentar. Utilizando o modelo e, este ano, antes do número de ser candidatos ser revelado, faço aqui a minha previsão:
No ano passado, o modelo previu um número de 40,025 candidatos ([37.488;42.576], intervalo de confiança a 99% ), sendo que valor divulgado foi de 40.419. Este ano prevê 39.976, num intervalo de confiança de 37.431 a 42.510. Prevê ainda que o diferencial entre o número de vagas e os candidatos se manterá elevado: se a correlação e a capacidade de previsão do número de alunos se mantiver, haverá cerca de 11.485 vagas por preencher (usando o intervalo de confiança deverão ser entre 8.951 a 14.030 vagas não ocupadas).
ACTUALIZAÇÃO: Por erro, na versão inicial desta entrada, tinha usado o valor de 7,5 valores para a média do exame de Matemática A, quando o valor é de 7,8. O gráfico e restantes valores foram actualizados.
Na universidade não há vida. As portas fecham-se. Os centros de investigação não funcionam. O pós-doutoramento é uma ficção útil para que quem manda não tenha de se preocupar com o desemprego de umas quantas pessoas que existem saltando de tese em tese. Paulo Rodrigues Ferreira, Vida de Bolseiro
Esta citação é a chamada de uma coluna de opinião no P3, por Paulo Rodrigues Ferreira, 29 anos, bolseiro de doutoramento e co-proprietário da Fyodor Books. Como antigo aluno de doutoramento e bolseiro, e estando ainda inserido na vida académica fiquei curioso, mas logo de seguida veio a desilusão. O texto é uma amálgama de coisas que não se percebem bem e acaba por fazer mais por manter a confusão do que clarificar e explicar os problemas aos leitores.
O bom
Eu fiz o meu curso em Portugal e o doutoramento nos Estados Unidos. Também fui bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) durante parte do meu doutoramento, que durou mais de quatro anos. A minha exposição à investigação científica em Portugal é, por isso, limitada, já que a maioria da minha experiência foi fora de Portugal. Ainda assim mantenho-me ao corrente do que se passa: conheço muita gente na academia em Portugal, sobretudo nas áreas das ciências naturais.
O que se passou em Portugal em termos de política de Ciência e Investigação pode ser, de forma simplista, resumido da seguinte forma: desde meados dos anos noventa houve um grande crescimento no número de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento. Sob a alçada de Mariano Gago, o número de bolsas cresceu exponencialmente. Entre outras coisas, o número de grupos de investigação cresceu e o número de publicações – um dos indicadores usados para medir a quantidade e qualidade da produção científica – aumentou de forma substancial. Portugal está longe de ser uma potência no panorama científico mundial, mas os avanços foram verdadeiramente significativos.
Com a crise chegaram os cortes. Há menos bolsas na sua totalidade, o financiamento para a Ciência e Tecnologia, e para o Ensino Superior em geral desceu. Há limitações nas contratações, burocracias e ineficiências administrativas que são um empecilho ao funcionamento do sistema, e a tudo isto se junta o decrescente número de alunos fruto de um país que envelhece cada vez mais depressa. Novos problemas acrescidos do agravamento de falhas antigas fazem com que o mundo académico viva momentos difíceis e desanimadores.
Por tudo isto há motivos para frustração e irritabilidade. Há uma ausência de perspectivas de futuro, muitas incertezas e falta de recursos. Em suma, a frágil academia portuguesa, sofre momentos que tornam vida académica uma experiência amputada e disfuncional. Este não seria o primeiro relato que me chega aos ouvidos de desânimo e irritação. São temas que merecem a pena ser noticiados e descritos. Problemas que urge debater e resolver, mas problemas que não são únicos num momento de crise económica e financeira.
Em particular, vejamos algo que afecta a vida de um bolseiro de doutoramento, que escolhe fazer a sua formação em Portugal: o seu salário. Uma vez aceite a candidatura, um bolseiro tem praticamente garantido uma bolsa mensal de €980 durante quatro anos, acrescida do valor do seguro social voluntário. Não tem subsídios de férias, direito a subsídio de desemprego, mas também não paga impostos. Um bolseiro é, isso mesmo, um bolseiro, não um empregado.
O valor das bolsas é essencialmente o mesmo há mais de quinze anos. Tendo em conta a inflação, a verdade é que a vida de bolseiro tem sido cada vez mais pobre. Para manter o poder de compra, os bolseiros de hoje deveriam receber entre €250-€300 por mês a mais.
Ano
Bolsas de Doutoramento
Financiamento
Salário
Salário Ajustado
1995
582
€ 4.465.015
€ 639
€ 1.423
2000
1358
€ 15.185.342
€ 932
€ 1.267
2005
2063
€ 25.405.899
€ 1.026
€ 1.194
2010
5387
€ 64.071.020
€ 991
€ 1.058
2013
4799
€ 56.694.315
€ 984
€ 984
Tabela 1 – Salários nominais de um bolseiro de doutoramento e actualização devido à inflação. [1]Este é um problema relevante, mas confesso que não sei exactamente se o Paulo concorda comigo porque a partir do primeiro parágrafo, o texto é uma amálgama imperceptível.
O mau
Pena que acabe. Pena que a minha bolsa acabe para o ano. Se entretanto não encontrar emprego, não terei direito a subsídio de desemprego. A única hipótese do ex-bolseiro de doutoramento é ganhar uma bolsa de pós-doutoramento, e depois disso entrar na meia-idade cravejado de artigos científicos no currículo, com pelo menos três dioptrias de miopia em cada olho e com o futuro assassinado pela ilusão de que a universidade o ampararia quando o resto falhasse.
Sim, é pena que acabe. Eu também tenho pena que a minha adolescência tenha acabado. Tenho pena de não poder ter os meus pais a sustentar-me e a alimentar-me, enquanto eu vou à escola e gozo a minha juventude. Sim, após o doutoramento não há direito a subsidio de desemprego, mas esta não é uma situação distinta da que encontram a grande maioria dos doutorandos mundo fora. É melhor na Escandinávia? É pois, mas que serviço do Estado não o é? E já agora, quão mais produzem, quão mais pagam de impostos e quão menos fogem aos impostos os cidadãos desses países?
Outro dos grandes problemas é a questão da empregabilidade. O emprego é difícil de encontrar? Certamente: a taxa de desemprego é elevada e o tecido empresarial nacional não absorve muitos doutorados. E se em relação a este último aspecto a academia não está isenta de culpas, a verdade é que este é um problema nacional. Se o doutorado tem hipótese de seguir para um pós-doutoramento, possivelmente tem mais hipóteses do que muitos dos seus compatriotas. Mas está longe de ser a «única hipótese». É no final do parágrafo, no entanto, que o Paulo começa a revelar um dos problemas do raciocínio que muitos fazem, o de um dia ter a «ilusão de que a universidade o ampararia quando o resto falhasse». Esta é, sem dúvida, uma ideia confortável: depois do Estado nos ter pago a educação, sustentado (precariamente, é certo, mas com o suficiente para nos alimentarmos e alojarmos, e até mesmo um bocadinho mais) durante um doutoramento, deveria, pois claro, amparar-nos o resto da vida.
O péssimo
Se for esperto, o bolseiro aproveita o tempo para escrever, para ler, para ver filmes, para namorar e, claro, para redigir a sua prestimosa tese (…). O problema é não viver, não saber mais do que aquilo que se escreve numa maldita dissertação, não ter visto um filme, não ter ido a um festival de música, não ter aproveitado para namorar, para respirar o ar da cidade.
Ora aqui está parte do péssimo contido nesta coluna de opinião. Antes o Paulo já havia dito que o bolseiro que não é esperto ultra-especializa-se e depois vai à sua vidinha, «cravejado de artigos científicos no currículo». Eu não sei exactamente o que é que o Paulo pensa acerca do que é fazer-se um doutoramento e qual é o seu objectivo. Um doutoramento é um contributo para o avanço do corpo de conhecimento da humanidade. Alguns doutoramentos, produzidos por seres excepcionais, são verdadeiramente marcantes e revolucionários. Mas como quase tudo na História a grande maioria são minúsculo contributos infinitesimais, isto sem falar naqueles que são maus e para descartar. Um académico é por definição um especialista. Ponto final.
Ora, quase todos concordaremos que um ser humano completo necessita de mais coisas na sua vida para além do seu conhecimento especializado. Um ser humano completo é um ser social, estabelece relações, cultiva-se, faz desporto, respira o ar da cidade (e do campo!), em suma deve viver. O Paulo diz que este é um dos problemas do bolseiro: não faz nada disto.
Não sei quem são os bolseiros que o Paulo conhece. Eu tive a oportunidade de fazer tudo isto: de namorar, de ouvir música, de ir a concertos e a teatros, de conhecer gente de todo o mundo, até de viajar, mesmo com um orientador que teima em não mandar alunos a conferências. Serei um privilegiado? Talvez. Mas a grande maioria dos bolseiros que conheço, nacionais ou estrangeiros, acabam por ter privilégios semelhantes aos meus. Alguns terão uma vida menos eclética, é certo, mas garanto-vos que é por opção própria (ou um orientador especialmente desagradável).
Não sei quem são os bolseiros que o Paulo conhece. E, deste texto, não consigo perceber qual é o motivo que os torna assim. O próprio Paulo é co-proprietário duma livraria, actividade essa que, imagino, está além do seu plano de estudos. Claramente tem tempo para sair abrir horizontes, e acho muito bem que assim o faça. No entanto, continuo sem perceber o que é que faz dos bolseiros bisonhos ignorantes. Será pela tal super especialização da academia? Mas não é essa a definição de um especialista académico? É um problema localizado e nacional ou é um mal mundial? Será por causa do famigerado problema que parece assolar o país: a falta de dinheiro? Não sei… mas investiguemos este aspecto.
País
Ano
Salário
Diferença custo de vida
Diferença salário
Comparação c/ salário mediano
Bélgica
2014
1800-2000
56%
94%
5%
Canadá
2014
1412
46%
44%
-40%
Dinamarca
2012
2370
82%
142%
7%
França
2010
1685-2020*
87%
89%
8%
Alemanha
2014
1000-1600
23%
33%
-27%
Irlanda
2014
1400
67%
43%
-15%
Itália
2014
1000-1250
56%
15%
-16%
Holanda
2014
2500
58%
155%
46%
Noruega
2005
3203*
114%
227%
-4%
Polónia
2014
550
-14%
-44%
-21%
Portugal
2014
980
–
–
41%
Espanha
2014
1147-1250
24%
22%
20%
Suécia
2006
2365*
30%
89%
15%
Reino Unido
2011
1373-1871*
61%
89%
-37%
EUA
2014
1500-1600
71%
79%
-8%
Tabela 2 – Valores aproximados de salários nominais de um bolseiros de doutoramentos em vários países, comparação desses salários com os valores portugueses e diferenças de custo de vida. Ainda a comparação do valor da bolsa com o salário mediano local.[2]Consultando a Tabela 2 é manifesta a diferença de rendimentos auferidos pelos doutorandos nos diferentes países. Mais uma vez, na Escandinávia, assim como na Holanda, ou na Bélgica, um doutorando vive melhor. Mas se atentarmos a outros locais, como nos Estados Unidos, na França, na Itália, na Polónia ou mesmo na Alemanha, o poder de compra de um aluno de doutoramento é comparável, se não pior do que em Portugal. Assim sendo, e tendo em conta o estado económico-financeiro do país, será que nos podemos queixar muito?
Mais uma vez, o Paulo não explicou qual é o problema da vida do bolseiro que não pode namorar ou ler. Talvez não seja o dinheiro.
O problema do bolseiro é o hiato entre a licenciatura e o fim do doutoramento ou do pós-doutoramento. O hiato entre os vinte e um ou vinte e dois e os quarenta anos. São muitos anos morto.
Ou seja, o problema do bolseiro é ser bolseiro: fazer aquilo que um bolseiro é suposto fazer. Não percebi se isto é uma crítica ao sistema académico que vigora no mundo actual, se um reparo ao mal que vive um bolseiro em Portugal. É certo que ninguém gosta de estar morto.
O sistema académico, de investigação científica e universitário português está debilitado e com muitos problemas, como já referi. Veja-se o caso recente do decréscimo no número de bolsas avançadas, ou ainda mais recente caso do corte do financiamento a centros de investigação mal classificados. Mas mais uma vez afirmo: vez não percebo o que faz do Paulo um morto.
No seu blog diz-se «licenciado, mestre e a tirar um doutoramento em História, disciplina que odeia e sempre odiará, na Faculdade de Letras de Lisboa, instituição que abomina tanto, mas tanto que quase vomita quando lá mete os pé». Que eu saiba, ninguém é obrigado a fazer um doutoramento. E se é sapo que tem de engolir para poder vir a ser professor, então não poderia ter escolhido uma disciplina que não odiasse, numa instituição que não abominasse? É uma maçada quase vomitar todos os dias! Mas pior ainda é caminhar deliberadamente para a sua morte, mesmo que temporária. Para alguém que se propõe ser bolseiro de investigação, não deixa de ser uma desilusão que não tenha conseguido investigar um bocadinho aquilo que seria a sua vida (ou morte) como bolseiro. Pior ainda é continuar a insistir estar morto quando se apercebeu do facto. E contribuir com mais ruído numa realidade conturbada.
Os valores mensais foram calculados dividindo o valor do financiamento da FCT pelo número de bolsas (Dados FCT), embora nominalmente o salário se tenha mantido nos €980, desde 2000. Para correcção da inflacção foram usados os dados da Pordata (Inflação Total Geral).
Estes valores foram recolhidos de forma pouco científica de diversos sites, sobretudo o Find a Phd e o agregador de salários Glassdoor. Não pretende ser uma recolha exaustiva ou rigorosa, mas apenas uma perspectiva aproximada das diferenças entre salários nos diversos países.
A diferença do custo de vida foi determinada usando o índice de preços de consumo incluindo renda, entre Lisboa e a capital de cada país, excepto na Suécia (Uppsala), Reino Unido (Cambridge) e Estados Unidos (Boston). Os dados são do site Numbeo.
Os salários medianos são essencialmente os referidos neste artigo da wikipedia, RU, EUA. Nem sempre foi possível obter relativos ao mesmo ano e antes/depois de impostos. Assim sendo, os valores são meramente indicativos.
*Valores antes de impostos
O Público fez uma interessante recolha de testemunhos sobre a praxe universitária. A experiência da praxe varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar. Umas são mais suaves, outras mais rígidas; há quem goste e quem não goste. Eu não gosto.
Antes de mais devo dizer que reconheço a importância dos rituais – marcam a cadência da vida. Todas as organizações têm rituais iniciáticos, é algo que faz parte da natureza humana. Quando fiz a minha licenciatura no Técnico fiquei surpreendido e indignado por não haver rituais oficiais de início e de fim de curso. No dia em que acabei o curso, apesar de ninguém ter verbalizado as palavras, a sensação que ficou foi dum “obrigado, agora deixe de cá aparecer”. Tendo depois me doutorado numa universidade americana, vi a força dum ritual de fim de curso – ou início de vida, já que se chama commencement. Os rituais marcam entradas e saídas, marcam presenças e pertenças. Os rituais fazem vir ao de cima uma sensação de sermos parte dum colectivo. Reconheço que em Portugal temos uma certa aversão a algum tipo de rituais. Pessoalmente não sou contra rituais. Mas sou contra a praxe.
A praxe é um ritual diferente: nas descrições dos que afirmam mais ter gostado da praxe, esta é tida como uma actividade que dura todo o ano lectivo e que se estende ao longo da duração do curso. No entanto, mesmo naquelas em que a “tradição” não é tão forte, há um elemento primordial sempre permanente: a força da hierarquia.
As análises dos especialistas que o Público consultou são interessantes. Aborda-se a natureza humana, a identificação e cópia duma sociedade idealizada, posterior à vida de estudante, e o teor erótico e sexual da motivação dos que participam na praxe. Não vou repetir argumentos, vou essencialmente discutir a questão da hierarquia e da noção latente de poder.
O conceito mais fundamental e indispensável à praxe é o da hierarquia: a submissão dos praxados, a superioridade dos praxantes. Embora os submissos possam sempre dizer “não” à praxe, os que verdadeiramente participam sujeitam-se à hierarquia. A marca dessa hierarquia é a capacidade de exercer poder sobre os destinos dos submissos. Jogos psicológicos e actividades físicas, gritos e ofensas verbais e actividades de confraternização – resumindo, penso, cabe tudo numa destas categorias.
«A praxe envolve humilhação, envolve gritos, envolve estar de 4». [1] «Cantei, andei de autocarro cheia de farinha e no final do dia estava sempre de sorriso nos lábios. Não houve um momento de humilhação, eu sei, estava atenta (…).» [2] «Nunca, no decorrer das praxes, me senti humilhado nem inferiorizado, isto porque apesar de estar a ser praxado, nunca recebi uma praxe que tal permitisse. Não se enganem, pois as praxes aqui são duras. Nunca me irei esquecer das directas consecutivas, da constante voz rouca, do cheiro contínuo a peixe, nem dos alhos e cebolas incontáveis que tive de comer, ou ainda dos joelhos esfolados, resultado de horas intermináveis de joelhos.» [3] Há quem diga que nenhum destes actos constitui humilhação ou ofensa – é certo que, em certa medida, aquilo que é humilhação ou ofensa é subjectivo e cada um submete-se ao que bem entender. Mas aos olhos da maioria da sociedade, rastejar porque alguém nos ordena (ou pede) não deixa de ser humilhação.
A praxe é, em teoria, opcional. Não vou falar da pressão dos pares e já mencionei o “não” que todos podem supostamente declarar. Mas é indiscutível que aqueles que se dizem “sim” se submetem à hierarquia. Os submissos são imediatamente tratados como “bestas”; pode ser que seja carinhoso, mas não deixa de ser um facto de que são considerados – de forma teatral ou não – como inferiores. Os submissos têm de acatar essas designações, bem como as ordens que lhes são dadas: o questionar existe apenas se se considerar que as regras da praxe estão a ser violadas.
Nos testemunhos há um número de pessoas que justificam isto como um mimetismo daquilo que os espera no futuro. Por exemplo, «(…) a praxe ensina-nos isto, ensina-nos que na vida há uma hierarquia natural e que nós vamos ter de aceitá-la, ensina-nos a respeitar essa hierarquia.» [1] Sim, mas… «O estatuto de caloiro tem como função explicar-lhes que quando forem trabalhar para uma empresa vão estar no patamar mais baixo de uma pirâmide hierárquica. Pior ainda: não terão ninguém que os ajude a adaptarem-se a essa realidade.» [4] «(…) um dia, num futuro emprego, o meu patrão poderá chamar-me de incompetente e eu terei de saber aceitá-lo (…)» [1].
Obviamente que todos nós vivemos em sociedade em que estamos inseridos em estruturas hierárquicas. Não, não temos que acatar, amorfos, as ordens e os insultos duma hierarquia insultuosa e desrespeitosa. Há qualquer coisa de espírito militar nestes testemunhos. Infelizmente, a visão que estes alunos têm do mundo é profundamente triste e inviesada, possivelmente causadora de danos irreparáveis. Se, como afirma um dos testemunhos, eles copiam o mal feito pelos “mais velhos”, então mais triste fico pelo facto de se conformarem em ser elementos que apenas perpetuam o mal-estar.
Nos testemunhos perpassa um espírito de amor à regra e à burocracia. É um amor próprio do funcionário-empecilho, daquele que se agarra às regras não como elementos estruturantes de uma comunidade, mas como a fonte de autoridade e legitimidade (vejam os relatórios que o conselho da praxe da Lusófona produzia!). «É por isso que existe um pequeno livrinho chamado “Código de Praxe”. No nosso mundo académico, temos normas específicas para regulamentar» [5]. «Há um controlo apertado no que toca a relacionamentos amorosos entre doutores e caloiros. Não é permitido esse tipo de relacionamento. “A praxe não é para o engate!” O que não invalida que haja pessoas que já namorem e que informem os responsáveis pela praxe para esse facto (ex: um casal de namorados do 12.º ano; ele entra na faculdade e ela reprova o 12.º. Ela, no ano seguinte, entra na mesma faculdade do namorado, que está agora no 2.º ano. O casal deve avisar a comissão de praxe para esse facto).» [4]
Também este sentimento se enquadra no espírito militar que já referi. As regras e a autoridade, a hierarquia e o poder incontestado. Todos já ouvimos historias, vimos filmes ou lemos livros que contam a brutalidade da organização militar, onde estes elementos estão todos presentes. «SOMOS um só, nós e os nossos doutores.» [6] Este é um dos elementos mais marcantes da pertença às forças armadas: a camaradagem. E é tanto maior quanto maior as privações passadas em conjunto. O elemento opressivo das praxes replica esta situação: os submissos passam por situações duras e difíceis em conjunto, momentos de extremo cansaço, vergonha e intimidação, tudo sob uma tensão opressiva que é aliviada de forma abrupta no final do ano. É o fim da guerra e eles sobreviveram.
A sensação é tão forte — quase todos nós já sentimos algo semelhante em diferentes contextos — que leva a que os que a sentiram mais intensamente queiram perpetuar e transmiti-la aos vindouros. Nem todos têm ânsia de poder, nem todos querem dominar; muitos querem apenas partilhar essa intensidade que viveram. Descrevem-na como camaradagem, amizade, integração, orgulho, etc. Há sempre aqueles que se entregam de corpo e alma, os que descobriram algo novo e que acabam por ser funcionários instrumentais da hierarquia: «No fim de tudo, eu que nem achava grande piada às praxes, fui caloira do ano.» [2]; «Fui eleita caloira do ano, para meu espanto. (…) Um dia trajei. Ai, que dia. Que saudades! O dia em que mais chorei, em que vivi tanta mas tanta emoção e que estava orgulhosa daquilo que tinha vestido. Traje para o qual tanto me esforcei. Senti-me completa.» [7]
Se os há heróicos, também há exemplo de militares abjectos e mesquinhos que se apropriam destes elementos para exercer o seu poder. São os mesmo que fazem a apologia do orgulho bacoco e exigem a dedicação inquestionável. No entanto no mundo militar preparam-se soldados para a guerra, para a morte pelos valores da pátria. Querer equiparar isso com o espírito académico é simplesmente ridículo.
«Sou grande animal, na mui nobre academia de Vila Real, UTAD.» [6] Desculpe? Grande animal? Não quero desrespeitar os que dão o seu melhor na UTAD, mas de que é que se orgulha esta estudante? Claro que todos devemos sentir orgulho das instituições a que pertencemos, onde aprendemos e crescemos, e que têm um papel importante na nossa formação. Mas que o seja pelas razões certas. Mais uma vez a Bia Miranda: «Encarem a praxe como deve ser encarada — uma tradição cultural que existe há tanto tempo no nosso país. Como pode ser assim tão “má”, existindo há tanto tempo e com tanta gente a orgulhar-se de nela se ter envolvido?!» Ui.
Como um soldado que vai à guerra, rejeitam que os outros, os civis, possam sequer conceber aquilo porque passaram: «Muitas dessas pessoas que estão a criticar forte e feio nunca foram a uma praxe na vida, nunca tiveram uma única experiência para poderem comentar sobre ela.» [5] «Só pode falar de praxe, só pode saber o que é a praxe QUEM foi praxado e quem praxou!» [4]. Se é certo que não terei as mesmas vivências, isso não me impede de poder discutir o assunto. É um argumento falacioso, esse do apelo à experiência. Posso falar sobre violações sem ter sido vítima de agressão sexual, posso falar de prostituição sem ter sido prostituto.
Há rituais de iniciação brilhantes, aqui ficam dois exemplos, um em português, outro em inglês. Mas da praxe académica, raramente vi exemplos que me interessassem. «Apenas consegui ver colegas meus a (…) ser submetidos a questões do tipo (…) “mostra-me o teu sexo” e “faz-me um broche”. Isto, para a grande maioria das pessoas, seria uma ofensa extrema e razões mais que suficientes para aniquilar a praxe.(…) A resposta às questões não têm nem teor sexual nem ofensivo. Só como exemplo, a resposta ao pedido de fazer um broche é pegar numa colher de café, que nos é dada, torcê-la e colocar no casaco do veterano tal como o acessório de vestuário, broche. (…).» [8]. Brilhante e hilariante! E claro, não só educativo e de bom gosto, como certamente instrutivo para a vida futura de um estudante.
Ao contrário do que muitos querem fazer passar, as universidade têm toda a culpa nos excessos. Elas são responsáveis pelos seus alunos e pela criação de um ambiente seguro e construtivo que promova a educação. E dizer que «todos os dias morrem pessoas nas estradas e não vamos proibir alguém de andar na estrada»[9] é simplesmente absurdo. Especialmente inadmissível tratando-se de um reitor.
Eu não duvido que das praxes saiam sentimentos únicos e intensos como já acima referi. Não duvido que uns façam amigos para a vida e que alguns até tirem proveito de conselhos, académicos ou de vida, que saem da confraternização proporcionada pelas praxes. Mas não consigo admitir que alguém queira aceder a isso sujeitando-se à submissão e ao insulto, à pertença a hierarquias que podem degenerar em “old boy networks”. Antes a recruta, sempre se pratica tiro ao alvo! Citando a Nídia Sobral, «acho que escrevi de mais (sic)». [5]
O Ciência Hoje fechou. Numa altura em que já nem os jornais nacionais têm secções exclusivamente dedicadas à ciência, o Ciência Hoje era responsável, desde há anos, por um importante trabalho de divulgação de Ciência, não descurando a produção nacional.
A Ciência é fundamental para o desenvolvimento das sociedades. Nós portugueses temos disso exemplo caríssimo na transformativa expansão marítima de há séculos. E agora, numa sociedade cada vez mais complexa, a Ciência é fundamental para solucionarmos muitos dos problemas que enfrentamos. Sendo que há muitos aspectos a ter em conta na promoção duma sociedade conhecedora, é inegável que a divulgação e difusão pública do conhecimento da Ciência é um factor fundamental e imprescindível.
Quando ouvi as novas do fim do Ciência Hoje, fiquei espantado pelo baixo valor do orçamento que necessita para sobreviver. O Ciência Hoje vivia ultimamente sobretudo de dotações estatais que, no contexto actual, acabaram. Por isso precisa da nossa ajuda para poder continuar.
Nos dias que correm temos solicitações de toda a parte e, claro, não podemos acorrer a todas. Mas se há projectos que consideramos fundamentais e se temos capacidade, devemos contribuir. A minha contribuição é magra, mas ajudei a criar uma campanha de angariação de fundos. Em Portugal, não há grande tradição deste tipo de financiamento, mas há casos que merecem a intervenção da sociedade civil. Se puderem ajudar, contribuam aqui. Obrigado pela ajuda e por toda a divulgação que possam fazer.
You common cry of curs! whose breath I hate
As reek o’ the rotten fens, whose loves I prize
As the dead carcasses of unburied men
That do corrupt my air, I banish you;
And here remain with your uncertainty!
Let every feeble rumour shake your hearts!
Your enemies, with nodding of their plumes,
Fan you into despair! Have the power still
To banish your defenders; till at length
Your ignorance, which finds not till it feels,
Making not reservation of yourselves,
Still your own foes, deliver you as most
Abated captives to some nation
That won you without blows! Despising,
For you, the city, thus I turn my back:
There is a world elsewhere.