10 de março de 2004

Há, entre nós, um mito social: só podemos confiar em nós próprios. Não só pretendo mostrar que não é verdade, como também é contraproducente.
Desde pequenos que nos dizem aquilo e outras coisas do tipo se queres fazer as coisas bem feitas, fá-las tu. Ou seja, o que nos querem transmitir desde muito cedo é que a independência não é só muito importante, como também é essencial para atingir o sucesso. Mas é uma independência que se foca na individualidade em vez de ser na autonomia.
Ora vejamos: é pura ilusão a verdadeira independência. Nós somos seres sociais, vivemos numa comunidade e, de alguns séculos para cá, evoluímos de tal maneira e especializámo-nos, que, para bem de outras coisas, tivémos de abdicar da capacidade de gerirmos individualmente tudo o que era humanamente passível de controlar. Assim, alguns de nós deixaram de produzir os seus próprios alimentos, ou de construir as suas próprias casas para se poderem dedicar a ajudar a tratar as doenças dos outros, ou para poder construir obras públicas de grande envergadura.
Depois passámos ao limite em que a especialização em determinadas áreas e a inovação foram de modo tal, que permitiu o aparecimento de novidades que não dominamos, mas que subitamente passam a fazer parte do nosso dia-a-dia e que rapidamente adquirem o estatuto de imprescindíveis. Assim passamos a depender dos outros. É neste preciso ponto que deixamos de ser independentes. Mais, não só deixamos de controlar partes das nossas vidas como somos obrigados a ter fé nos outros; temos de depositar a nossa confiança nos outros e acreditar que eles nos vão ajudar a satisfazer as nossas necessidades. Temos de confiar nos cálculos do engenheiro que fez a ponte, no técnico que reparou o elevador, no médico que nos doseia a medicação, no informático que desenvolve as redes informáticas, nos matemáticos que desenvolvem os algoritmos de encriptação, na empregada que tem a chave de casa…
Por mais independentes que sejamos estamos condenados a ter praticamente todos os passos da nossa vida controlados, ou pelo menos sujeitos a interferências exteriores. Não há hipótese a não ser que sejamos eremitas minimalistas.
Agora a parte mais difícil. Mostrar que este sentimento é corrosivo. Peguemos nos casos Japonês e Finlandês. Dois países que ficaram em grandes dificuldades, um após a 2ª Guerra Mundial, outro com a queda da União Soviética. Hoje são ambos potencias mundiais. São casos diferentes, mas que têm grandes semelhanças: a coesão nacional.
Esse sentimento é o motor para o avanço sustentado de uma sociedade. Como é que se pode construir uma comunidade (que já vimos que é totalmente interpenetrada) sem contribuir para o relacionamento entre os indivíduos. O homem é um ser simbiótico e na relação entre indivíduos é que consegue suportar o seu desnvolvimento.
Este é, para mim, um dos principais problemas da sociedade portuguesa. A quase total ausência de consciência cívica, mascarada pelo disfarce da auto-proclamada independência resultam num bloqueio de quaisquer tentativas de criar algo novo, fruto de iniciativas não individuais. E é por isso que só têm sucesso os casos de carolice. Talvez seja bom olhar para o Futebol Clube do Porto e tentar perceber o significado do termo equipa. Ser autónomo significa ter capacidades para nos melhorarmos individualmente dentro de alguns contextos e de podermos-nos defendermos minimamente. Não significa sermos independentes.
in www.100ideias.org

10 de março de 2004

"